Michael Löwy: “Para salvar o planeta, só com mudança radical”
Em agosto, as queimadas devastaram 29.944 quilômetros quadrados da Amazônia, área semelhante à do território da Bélgica. Líderes europeus reagiram com indignação ao descaso de Jair Bolsonaro no combate aos desmatadores, mas o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul permanece de pé. A preocupação com os incêndios florestais fica em segundo plano. “Para esses governos, o livre-comércio é sagrado”, lamenta o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris.
Estudioso das obras de Karl Marx, Leon Trótski, Rosa Luxemburgo, György Lukács e Walter Benjamin, o pesquisador tem obras traduzidas em 29 idiomas e participará do seminário internacional “Democracia em colapso?”, realizado em parceria pela editora Boitempo e pelo Sesc São Paulo de 15 a 19 de outubro, na capital paulista. Na ocasião, Löwy deve discutir a crise ambiental sob a perspectiva dos ecossocialistas, que consideram o atual modelo de desenvolvimento dos países capitalistas avançados, fundado em uma lógica de desperdício de recursos e do consumo ostentatório, uma ameaça à sobrevivência do planeta. Mais que isso, as agendas reformistas fracassaram na tentativa de reverter a tendência destrutiva.
Confira, a seguir, a entrevista concedida a CartaCapital. As inscrições para o seminário internacional estarão abertas, a partir de 25 de setembro, no site do Sesc.
CartaCapital: Quão sincera é a preocupação de países como França e Alemanha com a devastação da Amazônia?
Michael Löwy: A preocupação existe, mas, para esses governos, o livre-comércio é sagrado. É o princípio fundamental do neoliberalismo. Negócios são negócios, o resto vem depois, mesmo a Amazônia. Apenas se houver pressão dos movimentos sociais, que se opõem ao acordo entre a União Europeia e o Mercosul, haverá uma chance de brecar o assunto.
CC: Atualmente, os principais vetores de desmatamento na Amazônia são atividades agropecuárias voltadas para a exportação, como produção de soja e carne bovina. Em que medida o atual modelo de produção e consumo, em um mercado globalizado, é responsável por essa situação?
ML: O atual modelo de agronegócio exportador é o principal responsável pelo desmatamento. Em um primeiro momento, é indispensável colocar obstáculos a essa verdadeira guerra contra a Amazônia, multiplicando o corpo de fiscais, aumentado exponencialmente as penalidades e, sobretudo, apoiando os movimentos indígenas e camponeses que defendem a floresta. Mas, em última análise, é preciso romper com o modelo capitalista agroexportador, substituí-lo por uma agricultura camponesa, orgânica e voltada para o mercado interno.
CC: O que é, exatamente, o ecossocialismo? Quais são as suas principais propostas de intervenção?
ML: O ecossocialismo é a unidade dialética entre a crítica marxista do capitalismo e a crítica ecológica do produtivismo. Ele é o projeto estratégico de uma nova civilização, em ruptura com os parâmetros da civilização capitalista industrial moderna. Em vez da maximização do lucro como único critério, o ecossocialismo privilegia o cuidado de nossa Casa Comum, a Natureza, e a produção de bens de uso socialmente úteis. As prioridades da produção e do consumo serão decididas pela própria sociedade, num processo de planificação democrática. Os ecossocialistas participam ativamente de todas as lutas socioecológicas, trazendo sua visão anticapitalista radical e sua proposta alternativa: a transição a uma sociedade ecossocialista.
CC: As experiências de “socialismo real”, na China e na antiga União Soviética, também não foram antiecológicas?
ML: Sim, foram profundamente antiecológicas, salvo nos primeiros anos depois da Revolução Russa. Essas sociedades nunca chegaram a ser “socialistas”. Houve um processo de transição entre o capitalismo e o socialismo, abortado pela ditadura burocrática. O ecossocialismo implica uma ruptura radical com esse modelo burocrático, e com as experiências social-democratas, que não vão além do capitalismo “verde”. Precisamos de um novo modelo de socialismo, democrático e ecológico.
CC: Os governos têm apostado em tratados internacionais para minimizar os impactos ambientais, a exemplo do Acordo de Paris, em resposta à ameaça das mudanças climáticas. Qual é a efetividade desses compromissos?
ML: O espetacular fracasso desses tratados ilustra a impossibilidade de um “capitalismo verde”. Os Acordos de Paris foram o resultado mais avançado dessas reuniões internacionais. Reconhecem a gravidade da crise e a necessidade de não superar um aumento de temperatura global de 1,5 grau. Cada país se comprometeu a reduzir suas emissões de uma certa porcentagem. Um belo sucesso! Infelizmente, alguns detalhes atrapalham: como não há controle nem sanções, nenhum dos países cumpre suas modestas propostas. Pior: se todos cumprissem rigorosamente as promessas, o que não acontece, o resultado seria, segundo o cálculo dos cientistas, um aumento de 3 graus, uma temperatura insustentável…
CC: De que forma os movimentos sociais podem contribuir para a superação do atual modelo de produção e consumo?
ML: O papel dos movimentos sociais – camponês, ecológico, indígena, feminista, sindical, comunidades de base etc. –, assim como o das forças de esquerda, socialistas, ecologistas, comunistas, anarquistas, é fundamental para mudar a relação de forças. Só assim se poderá impor medidas urgentes para limitar os desastres, e criar as condições para avanços estratégicos em direção ao ecossocialismo.