Não há democracia com a imprensa que temos

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Leia artigo completo de Hugo Souza.

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Frito ou assado? Glenn girou ao contrário a roda de despedaçamento

Assistindo ao Roda Viva com Glenn Greenwald, do Intercept Brasil, lembrei do conto do escritor colombiano Alejandro Zambra que dá título ao seu livro “Meus Documentos”. O conto é sobre o amadurecimento de um menino no Chile de Pinochet até que, em 1988, “chegaram, ao mesmo tempo, a democracia e a adolescência. A adolescência era verdadeira. A democracia, não”.

Como pode haver democracia de fato com esta imprensa? Que imprensa? Esta imprensa que imprensa, interpela, quase que repreende um jornalista porque ele vem publicando informações de interesse público a ele confiadas graças à sua credibilidade internacionalmente construída e reconhecida.

Mas lembrei mesmo foi da avó do protagonista de “Meus Documentos”, que:

“Respondia de ‘maneira nenhuma, como disse o peixe’, ou então ‘como disse o peixe’, ou simplesmente ‘peixe’, para resumir essa frase: ‘De maneira nenhuma, como disse o peixe quando lhe perguntaram se preferia ser preparado frito ou assado’”.

Lembrei do “peixe” quando começou o Roda Viva da TV Cultura, o Roda Viva, ou simplesmente o programa que, já faz um bom tempo, só falta perguntar à audiência de um país já suficientemente envenenado como ela prefere o democrata sentado no centro do “roda”: frito ou assado?

Quando morei em Tübingen, na Alemanha – cidade de Hegel, Hölderlin e Goethe -, passava todos os dias em frente a uma janela de uma igreja luterana que mostrava a figura de um martírio na roda de despedaçamento, técnica de tortura e pena de morte usada na Alemanha até o século XIX.

A roda de despedaçamento, conhecida também como roda de Santa Catarina ou, também ela, simplesmente “roda”. Mas Glenn Greenwald a girou ao contrário, por assim dizer, como já tinha feito na Câmara e no Senado.

Frito ou assado? “De maneira nenhuma”. Glenn Greenwald moeu foi bem moidinho a moderadora isentona emprestada do Painel, da Folha; o morista do Valor Econômico; o “analista-chefe” (?) do site de notícias jurídicas Jota; o bolsonarista do jornal O Globo; e a editora de lavajatismo, desculpe, de Política do Correio Braziliense.

Ah, sim, faltou a “diretora-executiva” do portal Metrópoles. Quando anunciou-se que a roda, o Roda Viva com Glenn Greenwald tinha acabado de entrar nos assuntos mais comentados no Twitter em todo o mundo, ela murmurou: “nossa, que responsabilidade”. Depois, a jornalista-executiva perguntou ao Glenn, misturando fontes com chafarizes: “Não é mais fácil demitir os repórteres todos e contratar meia dúzia de hackers?”.

Na cidade universitária de Tübingen, pertinho da igreja luterana que tem na janela o martírio de São Jorge na roda, tem um janela com embaixo uma plaquinha: “Hier kotzte Goethe” (“Aqui Goethe vomitou”). Diante da “diretora-executiva” do portal Metrópoles, Glenn, que não é Goethe, apenas respondeu:

“Não. Jornalistas não têm o direito de participar de crimes. Mas quando um jornalista recebe informação de interesse público, mesmo que obtida de forma ilegal, ele tem não só o direito, mas o dever de publicar isso”.

E acrescentou, Glenn Greenwald, pausadamente, como às crianças da educação infantil: “isso não é um crime”.

Como foi possível?

O lavajatismo que grassa na imprensa brasileira, mesmo depois da Vaza Jato – talvez mais que nunca depois dela -, nisso não há roda de penitência que dê jeito… As raias a que o lavajatismo chegou na sociedade brasileira, se não chega às da loucura, chega ao ponto de a viúva de Alberto Goldman dizer sobre o marido morto, quase sobre o caixão do marido morto, como epitáfio mesmo, que “é uma honra” ele nunca ter sido citado na Lava Jato.

Sobre o Glenn, o Glenn de fato deu uma aula de jornalismo aos jornalistas que literalmente o cercaram na noite de segunda, como tanto vem sendo pontuado nas redes sociais. Mas foi uma aula apenas elementar, introdução ao jornalismo, talvez ética no segundo período, para uma gente – “diretora-executiva”, “analista chefe” – que, ao que parece, nunca foi lá muito devota ao ofício, para não dizer à Democracia.

Não estivesse o Roda Viva – e não é de hoje – tão empenhado em parecer a da Santa Catarina, teria sido interessante ver jornalistas de verdade questionando um jornalista de verdade sobre aquela que parece ser sua principal contradição.

Essa: como foi possível que o prêmio Pulitzer, advogado constitucionalista e morador do Brasil há mais de década Glenn Greenwald, como foi possível que ele um dia, até não muito tempo atrás, tenha sido um entusiasta da Lava Jato, considerando meros “erros” todas as claras amostras de que “a maior operação anticorrupção da história do Brasil” era na verdade um calendário eleitoral não consignado no TSE, de que a operação se tratava de conspiração?

Em tempo

Como é possível, afinal, ter Democracia de verdade com uma imprensa de mentira? Não é. O que também não é possível, porém, é jogar a toalha.

Em tempo: a avó do protagonista de “Meus Documentos”, que agradecia com “de nádegas” e respondia a quem reclamava do frio com “pelo menos não está calor”, ela costumava dizer também: “se é preciso lutatar, lutataremos”.

Do Come Ananás