‘Bolsonaro parece Chávez’, diz jornalista venezuelana
“Parte da grande imprensa é inimiga”; “tem jornal que vai fechar”: as frases são de Jair Bolsonaro (PSL), mas ao ouvi-las, a jornalista venezuelana Beatriz Adrián se lembra de casa.
“Parece Chávez no começo do governo. Ele insultava a imprensa, ria dos jornais e criticava repórteres publicamente”, disse ao UOL, em São Paulo, ontem.
Ela mesma, que fez carreira na TV Globovisión e atualmente é correspondente em Caracas da TV e Rádio Caracol, da Colômbia, afirma ter sido alvo da ira dos regimes de Chávez e Maduro por conta da profissão.
“Em janeiro, achei que ia morrer apanhando de guardas do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin)”, relata.
Ela afirma que se preparava para cobrir a prisão de Juan Guaidó, antes de ele ter se declarado presidente interino da Venezuela, quando foi levada por guardas bolivarianos.
A voz firme e impostada de Beatriz, treinada há anos no rádio e na TV, treme ao recontar as horas que passou em um porão, sem comunicação com a família ou advogados.
“Me arrastaram pelos cabelos, me obrigaram a dar a senha do meu celular e me trancaram com outra jornalista. Consegui avisar à rádio quando estava sendo presa, e o áudio foi ao ar ao vivo. Se não fosse isso, não sei o que teria acontecido comigo”, afirma.
No Brasil para participar hoje e amanhã do Festival Piauí de Jornalismo, cujo tema neste ano é “Quando a imprensa se torna o adversário”, Beatriz evita se aprofundar nas comparações com a situação política daqui, mas acredita que seu relato pode ser útil para a reflexão.
“Quem atira pedras na imprensa ou aplaude os ataques hoje pode se arrepender amanhã”, afirma.
Leia trechos da entrevista:
UOL – Como foi sua prisão?
Beatriz – Estava com uma colega da CNN em outra pauta e ouvimos rumores de que Guaidó tinha sido preso. Fomos correndo para a frente do Sebin, para onde imaginamos que ele seria levado, estacionamos e ligamos para nossos chefes. Estávamos pedindo que mandassem câmeras, furgão para transmissão ao vivo, era um grande momento. Vimos uns homens de uniforme atravessando a rua e até imaginei que estivessem escoltando o Guaidó. Mas vieram em nossa direção, nos obrigaram a sair do carro e perguntaram o que estávamos fazendo ali. Falei que éramos jornalistas, daí tudo começou…
O que disseram?
Nos obrigaram a dar os telefones e a acompanhá-los. Estava no telefone com a [rádio] Caracol e falei que estávamos sendo presas. Um guarda falou que eu ia ter que desligar o telefone por bem ou por mal e me derrubou, me arrastou pelos cabelos e me levou para um porão. Não me explicou por que eu estava sendo presa, até quando. Achei que eu ia morrer apanhando. Meses antes, o vereador Fernando Albán, de oposição, foi encontrado morto no Sebin, e o governo diz que foi suicídio. E eu estava ali, naquele prédio, sem saber por quê, sem telefone. Pensava nos meus filhos e chorava. A minha colega chegou à mesma sala alguns minutos depois, e estávamos as duas sem saber o que ia acontecer. Uma guarda, feminina, entrou na sala e nos revistou. Perguntei se o Guaidó estava ali também. Ela fez com a cabeça que não e falou: “quando vocês saírem, vão saber”. Daí entendi que iriam nos liberar.
Ficaram quanto tempo presas?
Algumas horas, na verdade. Nos chamaram em uma sala, e todas nossas coisas, bolsas, pertences estavam espalhados sobre uma mesa. Falaram para guardar tudo e sair. Como consegui avisar à rádio quando estava sendo presa, e o áudio foi ao ar ao vivo, virou um escândalo. Se não fosse isso, não sei o que teria acontecido comigo e com minha amiga. Saímos correndo, tremendo, nem sei como conseguir dirigir. Encontrei meu marido, minha família, desabei a chorar e vi que o pior ainda estava por vir.
Te processaram?
Não. Mas mentiram. O ministro Jorge Rodríguez convocou uma coletiva de imprensa e deu sua versão. Falou que o Guaidó tinha armado uma “autoprisão” e que eu e minha colega, que trabalhamos para a CNN e para uma rádio colombiana, que são para a Venezuela a encarnação do mal, estávamos armando um golpe. Afinal, que coincidência, como justo uma “colombiana” e uma americana estavam ali no local onde o Guaidó seria preso? No dia seguinte, o governo deu a mesma versão, dessa vez com nossos nomes e sobrenomes. Num país como a Venezuela, aquilo era quase uma ordem para que nos atacassem. Fiquei com medo de ficar lá. Há grupos armados, financiados pelo governo, que intimidam e agridem jornalistas. Minha amiga foi para a Argentina, eu consegui apoio de uma associação de direitos humanos na Holanda e fiquei três meses lá.
Como a opinião pública reagiu? Há gente que apoie o governo e acredite que a imprensa é inimiga?
Olha, na época do Chávez até havia. Eu chegava a um bairro pobre ou a uma manifestação chavista com o microfone da Globovisión, que o Chávez dizia que era imperialista, traidora da pátria, mercenária… e as pessoas gritavam essas mesmas palavras, nos expulsavam. Precisávamos sair correndo para não sermos linchados. Mas agora mudou. Agora essas pessoas sabem que só restam os jornalistas para ouvir seus apelos. E o agora governo retalia até quem dá entrevista. Fiz uma reportagem com uma mãe de três filhos que me contou que o salário só dava para comprar um quilo de arroz. Um quilo! Uma coisa horrorosa, as crianças desnutridas. Depois que a reportagem foi ao ar, funcionários do governo foram à casa dela e falaram que a cesta básica que ela recebia seria cortada e que ela teria então mais razões para denunciar. Imagine como eu me senti… culpada, claro.
Falando em culpa, Chávez dizia que a imprensa publicava mentiras para atrapalhar o governo. O que você acha da tese de que a mídia às vezes joga contra o país?
Olha, o papel da imprensa é criticar, apontar os erros. Se a Venezuela está como está, a culpa não é da imprensa. Eles que falharam como governantes. Querer colocar a culpa na imprensa é uma estratégia bem pensada para criar um inimigo. E as pessoas, num primeiro momento, até vezes acreditam.
E como explicar para os leitores que o papel da imprensa é esse? Lula reclamava da mídia, agora Bolsonaro intensificou as críticas…
Não conheço com profundidade a situação atual do Brasil. Mas sei que Bolsonaro também ironiza alguns repórteres, reclama da Folha. Repercute no mundo todo e me lembra Chávez no início. Ele insultava a imprensa, ria dos jornais e criticava repórteres publicamente. E foi, pouco a pouco, sufocando os jornais críticos. Imagine: hoje Bolsonaro fala que a Folha mente, amanhã começa a impor multas ao jornal, espanta os anunciantes, o jornal ou fecha, ou precisa ser vendido. Foi isso que aconteceu na Venezuela. Ou fecharam, ou foram comprados por gente ligada ao governo. E tudo o que acontece lá agora só é publicado por jornais, rádios, TVs estrangeiras. E isso não é bom para ninguém.
Talvez para o governo?
Nem para o governo. Se eu tivesse que dar um conselho para qualquer governo, até para Bolsonaro, seria: prove que a imprensa está errada. Mostre que sua imagem no exterior está deturpada. Convide os jornalistas para verem o que você está fazendo. Aguente as críticas e responda-as com dignidade, pois é isso que se espera de seu mandato. Uma imprensa livre é a prova de que um país é democrático e vai ser útil inclusive para defender o seu governo se um dia você precisar.
Você trabalha com medo?
Desde que voltei da Holanda, não publico quase nada nas redes sociais. Me obriguei a ser mais discreta, e muitos colegas agora vivem assim. Semanalmente, o governo tem uma emissão na TV que dura horas. E em algumas dessas transmissões, eles dedicam parte do tempo a ler recortes de jornais e falar: “Beatriz, ou Bruno, do jornal tal. Fique de olho, vai ter ‘tum tum'”. Isso quer dizer que alguém vai bater na sua porta para te cobrar explicações por algo que você publicou. Então toda a imprensa assiste com medo a esses programas esperando para ver se o nome vai ser lido em cadeia nacional. É uma covardia: o governo tem o exército, tem dinheiro, tudo a sua disposição para intimidar. E nós só temos a caneta, o microfone.
Você já pensou em mudar de profissão ou mudar de país?
Todos os dias. Meu marido é jornalista também. E o pai dele também era. E está velhinho e tem minha avó também, que depende de mim. Não é tão fácil. Milhares de jovens venezuelanos deixaram o país e agora temos um contingente de idosos abandonados. E os jornais locais não mostram isso. Deixei a Globovisión quando ela foi comprada e pararam de cobrir manifestações contrárias ao governo. Fui trabalhar com o terceiro setor, com empreendedorismo social, em algo que pudesse ajudar meus filhos. Mas recebi essa proposta da Caracol, da Colômbia, e vou te confessar: quando me ligaram, eu chorei. Chorei porque pensei que estava cansada, que não queria mais ter que fazer isso, mas que era uma oportunidade que eu não podia deixar passar. E aqui estou eu…
De UOL