Congresso debate entrega do saneamento à iniciativa privada
Na tentativa de reverter os baixos índices de acesso a água e esgoto tratados no país, o Congresso virou palco de uma disputa de projetos para mudar as regras para empresas de saneamento.
O governo quer dar mais abertura para que a iniciativa privada possa operar na área de saneamento, um dos maiores gargalos do país. Mas o lobby de governadores, companhias estaduais de água e esgoto e do setor privado embaralhou as discussões, que começaram no ano passado. Até hoje não há consenso.
Ainda não há previsão para que deputados e senadores cheguem a acordo sobre o tema. Em jogo, está a abertura do setor para a competição entre empresas privadas e estatais, hoje dominantes.
Uma ala do Legislativo, sobretudo das regiões Norte e Nordeste, defende sobrevida para as companhias estaduais, que, na avaliação do governo, são ineficientes, perderam a capacidade de investimento e não são capazes de universalizar o serviço de água e esgoto.
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério de Desenvolvimento Regional, só 52,4% dos brasileiros têm acesso à rede de esgoto.
Ou seja, há 100 milhões de brasileiros sem acesso a esse serviço, quadro agravado por discrepâncias regionais: no Norte o índice de acesso à rede de coleta de esgoto é de 10%; no Sudeste, de 78,6%.
Reverter essa disparidade é um dos desafios. O centro da discussão no Congresso são os chamados contratos de programa, que passam a operação do setor de um município para outra entidade pública (estatais). Atualmente, são raros os casos de prefeituras que já abriram esse mercado para a iniciativa privada.
Na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB), foi proposto acabar com os contratos de programa. Na prática, o plano impedia que novos contratos entre municípios e companhias estaduais de água e esgoto fossem firmados. Assim, seria exigida licitação do serviço —concorrência entre a iniciativa privada e estatais.
As tentativas de Temer ocorreram por medida provisória, que passam a ter efeito assim que editadas, mas que precisam do aval do Congresso em até 120 dias para não perder validade. Sem consenso, as propostas não avançaram, mesmo com o apoio da equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro no começo do ano.
Favorável à mudança nas regras, a Abcon (Associação Brasileira de Prestadores Privados dos Serviços de Saneamento) avalia que o modelo de contratos de programa prejudica a transparência e efetividade da prestação de serviços e restringe a concorrência.
Representantes das companhias estaduais de água e esgoto discordam. Argumentam que uma visão unicamente privatista do saneamento, que está ligado à saúde pública, não atende à busca pela universalização do serviço.
No capítulo mais recente do embate no Congresso, a Câmara criou uma comissão especial para analisar todos os diferentes projetos para novas regras no setor.
O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que defende a abertura da concorrência, escolheu um deputado do seu partido, Geninho Zuliani (DEM-SP), para relatar uma versão da proposta.
Zuliani apresentou na quarta (9) um texto, que, segundo associações da área de saneamento, tem um lado mais privatista que o projeto original de Temer e endossado por Bolsonaro. A medida ocorreu após o Senado aprovar em tempo recorde um texto que dava sobrevida às estatais.
A proposta de Zuliani prevê que os contratos entre prefeituras e companhias estaduais em vigor definam metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
Há um prazo estimado de um ano para essa adaptação. Segundo o deputado, se isso não for feito, o contrato poderá ser cancelado mesmo antes do fim do prazo. Assim, é aberta licitação para que a estatal e empresas privadas concorram pela prestação do serviço.
A nova versão também permite a estatais com bons resultados (cobertura de 90% do serviço de abastecimento de água e 60% da coleta e tratamento de esgoto) ter o serviço estendido por até cinco anos após o fim do contrato desde que o novo prazo não supere 31 de dezembro de 2033.
“O relatório não busca a resolução do saneamento, mas a privatização de todo setor, sem ter chances de autonomia para uma prestação conjunta. Os casos de sucesso onde se busca a universalização é a junção do público com o privado”, afirma o presidente da Aesbe (Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento Básico), Marcus Vinícius Neves, que atua na Cagepa (Companhia de Água e Esgoto da Paraíba).
Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), diz que o ideal seria poder unir modelos públicos e privados.
“Criou-se essa polarização público e privado, que esvazia o cerne da questão, que é a eficiência das empresas. A união do setor público com o setor privado é que vai permitir que o saneamento avance no Brasil, mas esta não é a visão que o projeto apresenta”, disse Souza. Ele afirma que a proposta poderá desestruturar o saneamento no país.
O projeto de Zuliani tem que passar por votação na comissão especial, quando pode sofrer mudanças. Depois, segue para o plenário da Câmara.
A proposta do relator não é unanimidade na Casa. Aliado de Maia, o deputado Fernando Monteiro (PP-PE), por exemplo, é autor de outro projeto e defende a assinatura d novos contratos com companhias estaduais de água e esgoto.
A versão final aprovada pelos deputados irá para avaliação dos senadores, quando deve haver mais embate sobre o tema, já que o Senado concluiu, em junho, a aprovação de uma versão bem diferente para o novo marco legal.
Por maioria, os senadores decidiram que o melhor seria permitir aos municípios prorrogarem, mais uma vez, os contratos com as estatais, o que permitiria a atuação de companhias estaduais sem concorrência por até 30 anos.
O projeto aprovado no Senado foi apresentado por Tasso Jereissati (PSDB-CE), favorável à ideia de Temer. Interlocutores de Bolsonaro tentaram acordo com partidos para aprovar o texto com poucas alterações, sem sucesso.
Da FSP