MPF denuncia crimes da ditadura contra indígenas

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Foto: Reprodução

O Ministério Público Federal ajuizou ação penal pública contra o major reformado da Polícia Militar de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro, 88, por suposto crime de genocídio contra indígenas durante a ditadura militar (1964-1985).

Ex-comandante da patrulha rural da PM mineira, Pinheiro foi nomeado pela ditadura, em dezembro de 1968, chefe regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Minas e Bahia.

O major comandou o chamado “reformatório” Krenak, um eufemismo para prisão de indígenas, criou e coordenou a GRIN (Guarda Rural Indígena) e foi o responsável, segundo o Ministério Público Federal, pela “remoção forçada (exílio) do território tradicionalmente ocupado” pelos krenaks.

Os procuradores apontam que os três episódios são “graves violações aos direitos humanos”, praticadas “com nítida intenção de destruição do grupo étnico krenak”.

A petição do Ministério Público Federal, subscrita pelos procuradores da República Lilian Miranda Machado e Edmundo Antonio Dias Netto Junior, está sob avaliação da Justiça Federal, que decidirá se acolhe ou não a denúncia.

Conforme a lei 2.889, de 1956, pratica crime de genocídio quem “com intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” pratica cinco atos, dentre os quais “causar lesão à integridade física ou mental de membros do grupo”, “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição e física total ou parcial” e “adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo”.

As penas previstas para o crime de genocídio nessas três práticas citadas contra o militar oscilam de um a 15 anos de prisão.

No entender do Ministério Público Federal, as condutas atribuídas a Pinheiro não estão sujeitas às regras de extinção de punibilidade previstas na Lei da Anistia, de 1979, e no Código Penal, de 1940, pois “foram cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população brasileira durante a ditadura militar”.

Os procuradores atribuem a Pinheiro um papel determinante em uma série de fatos ocorridos com os krenaks e outras etnias na região de Resplendor (MG) e Carmésia (MG). Em 1969, a ditadura criou uma GRIN, formada por índios de diversas etnias.

Em 1972, numa entrevista concedida ao “Jornal do Brasil”, Pinheiro confirmou que foi ele “quem criou a GRIN e idealizou [a prisão] Crenaque”. Ele foi o chefe da Funai na região de 1968 a 1973.

A primeira turma da GRIN, formada em 1970, incluía indígenas karajá, kraô, xerente, maxacali e gavião. Foram “treinados com instruções militares, inclusive de prática de tortura”, como foi apontado após um vídeo gravado na época e localizado em 2012 pelo pesquisador Marcelo Zelic e divulgado pela Folha no mesmo ano.

Nas imagens, indígenas da GRIN simulam, durante um desfile militar, o uso de um instrumento de tortura, o pau-de-arara. Os procuradores coletaram depoimentos de diversos indígenas sobre a violência praticada pelos soldados da GRIN.

Douglas Krenak, por exemplo, neto de Jacó Krenak, uma das principais lideranças indígenas da região, contou que seu avô era submetido a sessões de espancamento.

“Meu avô era muito resistente. Ele não aceitava, então ele tomava mais na cabeça. Falava com ele, ele trucava, então tomada na cabeça direto. Ele sofria mais, acabava apanhando muito, ele apanhava demais.”

Os soldados da GRIN foram utilizados pelo major Pinheiro para o patrulhamento do “reformatório” Krenak. Segundo o Ministério Público Federal, em ofício o então presidente da Funai, o general do Exército Oscar Jerônymo Bandeira de Mello, afirmou que a prisão é “uma colônia bem aparelhada em Minas Gerais”, destinada a “corrigir índios desajustados”.

O Ministério Público Federal computou que a prisão recebeu pelo menos 94 indígenas de 15 etnias diferentes oriundos de onze estados de cinco regiões do país.

“Os indígenas eram confinados por motivos diversos: embriaguez, roubo, homicídio, vadiagem, saída sem autorização do posto indígena, prostituição, atritos com o chefe do posto indígena, envolvimento na luta pela terra, ‘perturbação’ das autoridades responsáveis pela tutela dos índios, manutenção de relações sexuais consideradas ilegítimas e pederastia”, diz o MPF.

Diversos depoimentos sinalizam a arbitrariedade das prisões e das “penas” impostas aos índios. Havia índias presas, por exemplo, sob acusação de “’vadiagem’, porque namoravam”.

Outras índias foram presas “apenas por saírem da área da aldeia para vender artesanato, como a tia de Dejanira, ‘Bastianinha’”.

O substituto de Pinheiro em 1973, João Geraldo Itatuitim Ruas, declarou que mandou fazer um levantamento e constatou que, de cerca de 150 índios presos, “80% não tinha nenhum documento nem a causa” das prisões.

De acordo com declarações do próprio Pinheiro ao “Jornal do Brasil” em 1972, não havia “pena” determinada e a permanência do indígena na prisão era definida pelas autoridades com base no “comportamento” do preso.

“Se for arredio, violento, será posto sob vigilância contínua e trancafiado ao anoitecer. Senão, terá liberdade suficiente para locomover-se na colônia.”

A indígena Maria Julia Izidoro Krenak declarou que “não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O capitão Pinheiro era que decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava”.

Os procuradores apontaram que pelo menos 40 indígenas ficaram confinados no “reformatório” por exclusivas “decisão e ordem de Pinheiro”. “O presídio Krenak, assim, foi uma verdadeira aberração jurídica e social na história do país”, escreveram os procuradores.

Indígenas eram proibidos de praticar rituais de seus antepassados e de falar a língua materna. Manelão Pankararu e outros indígenas contaram que eram comuns maus tratos físicos e que havia uma solitária na qual os detentos eram jogados por razões diversas.

“Havia uma cela que ele chamou de ‘cubículo’, que era onde eles pegavam os índios e ‘metiam o cacete’; era possível ouvir os índios gritando. ‘Era ali que o índio tomava couro’. Havia um pau de arara, ‘igual cadeia’; no cubículo havia um pau de arara e também o ‘cachorro quente’, que era um aparelho que ficava jogando água do teto o tempo inteiro e o índio ficava dois dias numa cela molhada.”

Em depoimento à CNV (Comissão Nacional da Verdade), o guarani-kaiowá Bonifácio Duarte, que também passou pela prisão Krenak, contou que os índios eram amarrados “no tronco, muito apertado”.

“Quando eu caía no sorteio para ir apanhar, passava uma erva no corpo para aguentar mais. Tinha outros que eles amarravam com corda de cabeça pra baixo. A gente acordava e via aquela pessoa morta que não aguentava ficar amarrada daquele jeito. [Para não receber o castigo] a gente tinha que fazer o serviço bem rápido. […] A gente tinha medo. Os outros apanharam mais pesado que eu. Derrubavam no chão.”

Um relatório de 1976 localizado pelo Ministério Público Federal nos arquivos da Funai demonstra que o governo teve conhecimento dos fatos à época.

“Conforme já é de conhecimento da ASI/Funai, bem como de nosso presidente e demais diretores, esses índios [maxacali] viviam oprimidos pela força, quando na gestão do sr. capitão Pinheiro, da Polícia Militar, como delegado regional e chefe da Ajudância Minas-Bahia. Existem inúmeros relatórios a respeito dos fatos ocorridos. Tratava-se de regime da fome e da pancada. Os índios viviam apavorados, pois por qualquer desajuste levariam tremendas surras, além de serem recolhidos ao xadrez no ‘Crenack’”, diz o documento.

Pinheiro também é acusado pelo Ministério Público Federal de manter controle sobre a vida sexual dos indígenas, que era “fiscalizada” e repreendida. Um telegrama da época enviado a Pinheiro pelo cabo da PM Antônio Vicente, por exemplo, diz que uma indígena karajá “manteve relações sexuais com o índio […] na casa da escola, apenas uma vez. Foram severamente repreendidos pelo ato que praticaram”.

Por fim, Pinheiro é acusado pelo Ministério Público Federal de “conduzir e levar ao exílio todos os indígenas” krenak da região, ao promover, em dezembro de 1972, a transferência forçada “de todos os indígenas que estavam” em um posto indígena sob comando do militar, “com a deliberada intenção de submeter o seu povo a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial”.

Os índios foram levados de Resplendor para Carmésia (MG) e só em 1997 conseguiram recuperar a posse de seu território original.

“O exílio provocou o afastamento dos locais onde, às margens de seu Watu, como chamam o rio Doce, realizavam rituais religiosos, a impossibilidade do acesso a materiais utilizados para suas práticas tradicionais e a dispersão de diversas famílias krenak por locais distintos do território nacional. Ainda hoje essa etnia luta com dificuldade contra a perda ou enfraquecimento de suas tradições e o golpe desferido contra seus modos de vida, que afetaram severamente sua reprodução sociocultural, somente recuperada pela extraordinária resiliência do povo krenak”, diz a denúncia.

OUTRO LADO
Segundo o Ministério Público Federal, Pinheiro hoje reside em Congonhas (MG). O major reformado não foi localizado pela Folha. Ele já foi procurado outras vezes pelo MPF para se manifestar, mas optou pelo silêncio. Em 2016, quando foi alvo de uma ação civil pública sobre fatos correlatos à nova denúncia, ele se recusou a prestar depoimento ao Ministério Público.

Na entrevista concedida ao “Jornal do Brasil” em agosto de 1972, Pinheiro defendeu sua atuação junto aos indígenas: “Meu trabalho já vem sendo desenvolvido há quase seis anos e acho que tem dado um bom resultado, com salvo extremamente positivo.”

Folha