Na ONU, Brasil omite violência policial, LGBT e clima

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Foto: Jamil Chade

Com o objetivo de angariar votos para a eleição que ocorre na ONU neste mês de outubro, o governo brasileiro produziu um material de propaganda em que coloca as prioridades do país no que se refere aos direitos humanos e seus compromissos.

Nele, o Brasil defende família e religião. Mas no documento produzido em inglês, francês e espanhol, o governo se “esquece” de mencionar a forma pela qual pretende se engajar para melhorar a situação das prisões, da tortura, da violência policial, do meio ambiente ou dos homossexuais, que sequer são citados. Ou seja, alguns dos principais desafios do país são simplesmente ignorados entre os compromissos assumidos.

O Brasil busca renovar seu mandato para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Para isso, precisa de 97 dos 194 votos da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas o que tem chamado a atenção é a forma pela qual o país tem se apresentado ao mundo.

No início do ano, o blog já havia revelado como esses termos não constavam do programa de compromissos elaborado pelo estado brasileiro. Agora, eles voltam a ser omitidos diante da produção do material de publicidade que é colocado em diversos pontos de distribuição na sede da ONU e enviado às missões estrangeiras.

Numa carta introdutória, o chanceler Ernesto Araújo e a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deixam claro que os “compromissos assumidos refletem a prioridade absoluta atribuída pelo governo brasileiro à promoção e à protecção dos mais altos padrões de direitos humanos”.

Os compromissos, porém, ignoram alguns dos principais pontos de alerta lançados sobre o Brasil por parte da da ONU.

O governo, por exemplo, não cita nenhuma ação ou reconhecimento de problemas no que se refere à situação das prisões do Brasil. De forma insistente, os relatórios da ONU denunciam as graves violações de direitos humanos nos centros de detenção no país. Cartas sigilosas também foram enviadas ao governo, pedindo respostas à suspeita. Para a ONU, é responsabilidade do estado brasileiro garantir a segurança dentro das prisões e proteger a vida dos detentos.

Tampouco há qualquer referência à tortura, um aspecto também denunciado pela ONU. A entidade chegou a alertar que tais práticas eram “generalizadas” em certos centros de detenção.

Outro aspecto esquecido é a violência policial, um tema denunciado inclusive pela alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, há poucas semanas. Ela citou o aumento das mortes a partir de operações policiais, gerando uma forte resposta por parte do governo brasileiro.

Outra omissão se refere à igualdade de gênero. A palavra, de fato, sequer faz parte da brochura, assim como tem sido evitada em todos os fóruns internacionais por parte do governo. A explicação é de que apenas é reconhecido o sexo biológico. Assim, na cartilha promocional, o Itamaraty explica que o governo “toma como premissa o texto constitucional brasileiro que estabelece que homens e mulher são iguais em direitos e obrigações”.

Apesar de o texto trazer compromissos em 21 áreas diferentes, a palavra “homossexual” não é citada nenhuma vez, apesar de o Brasil ser considerado como uma das democracias com maior número de ataques contra a comunidade LGBT.

No lugar, há um capitulo sobre a proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, um termo que não é explicado pelo governo. No texto de propaganda, o Brasil se compromete a combater “todas as formas de violência e discriminação, em especial no que se respeita a grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade”.

O governo também se compromete a lutar contra a “discriminação que afeta pessoas em situação de vulnerabilidade, qualquer que seja a motivação”. Uma vez mais, não se explica quem são esses grupos.

Ainda que a ONU tenha declaro as mudanças climática como a maior ameaça aos direitos humanos, o assunto não faz parte dos compromissos do Brasil. O governo apenas cita as políticas para o “desenvolvimento sustentável das populações indígenas” e se compromete a garantir acesso aos direitos sociais e de cidadania dos povo indígenas.

A campanha fala do compromisso em defender ativistas de direitos humanos. Mas não cita os ambientalistas em seu material de promoção, repleto de fotos e logotipos do governo.

Família e Religião

Se o governo não incluiu alguns dos principais temas de preocupação dos direitos humanos no Brasil, o Itamaraty fez questão de dar destaque para temas como a religião, uma bandeira que o Brasil levou à ONU para defender cristãos que estejam sendo perseguidos.

Na brochura, Brasil diz que “valoriza sua rica diversidade”, que defende a toleraria e entendimento mútuo. O governo ainda se compromete a “proteger a respeitar todas as expressões religiosas, inclusive a opção de não ter nenhuma religião”.

Outro ponto de destaque é a familia e a promessa de agir para “fortalecer os vínculos familiares”. Na visão do governo, a família é considerada como “o ponto focal da atuação do estado”. O texto ainda indica que, na ONU, o Brasil irá “apoiar iniciativas que contribuam para fortalecer as estruturas e relações familiares, levando em especial consideração as diferentes circunstâncias socioculturais e econômicas da família”.

Nas últimas semanas, a religião e a família tem de fato concentrado a atenção da diplomacia brasileira. Na ONU, Araújo participou na semana passada de um evento cujo objetivo era justamente o de defender a posição do governo pela defesa dos cristãos e da liberdade de religião.

Dias antes, em uma reunião em Budapeste, Damares já havia lançado a ideia de uma aliança liderada pelo Brasil na ONU para adotar medidas “pró-família”.

A lista de assuntos de prioridade do Brasil ainda incluem temas como idosos, juventude, privacidade na Internet, racismo e liberdade de imprensa.

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)

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