Bolsonaro ignora crise em institutos de pesquisa da Amazônia
As duas mais antigas instituições de pesquisa da região amazônica enfrentam uma crise que ameaça sua capacidade de produzir conhecimento científico considerado vital para a proteção da Amazônia, dizem cientistas destas instituições ouvidos pela BBC News Brasil.
Os principais problemas enfrentados hoje pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Museu Paraense Emilio Goeldi, que estão sob a alçada do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC), incluem a redução de seus orçamentos nos últimos anos, a suspensão de bolsas de pós-graduação e a queda do número de seus pesquisadores e técnicos em atividade.
“Sem concursos públicos e abertura de vagas para repor a enorme quantidade de pessoal qualificado que se aposentou, nossas instituições perdem cérebros, capacidade de produção e comunicação do conhecimento, formação de pessoal especializado e de colaboração junto a gestores, setores produtivos e comunidades”, diz a bióloga Ana Luísa Albernaz, diretora do Museu Goeldi.
Na última década, a instituição também sofreu cortes e contingenciamentos em seu orçamento. Albernaz aponta que o pior ano foi 2017, quando foram liberados R$ 7,4 milhões dos R$ 12,6 milhões aprovados inicialmente.
Após essa crise, afirma a diretora do Museu Goeldi, o orçamento do museu em 2018 e 2019 se manteve em um patamar de R$ 15 milhões. “Isso nos permitiu manter estritamente o funcionamento da instituição”, diz Albernaz, que credita a um esforço do MCTIC não ter havido corte ou contingenciamento no orçamento dos institutos de pesquisa ligados à pasta neste ano.
O número de servidores e pesquisadores em atividade no instituto também vem caindo. Em 2018, de acordo com os dados oficiais mais recentes disponíveis, eram 561, dos 158 cientistas — isso representa 40% do número máximo que o Inpa já teve historicamente.
Esse quadro pode se agravar, porque 40% de sua equipe já pode se aposentar, e o governo federal suspendeu a realização de concursos públicos ao menos até 2020, sob a justificativa de houve um excesso de contratações nas últimas gestões.
Para chamar atenção para a situação do instituto, alunos de mestrado e doutorado e servidores criaram o movimento Salve o Inpa, que realizou uma manifestação no início de setembro, com a presença de pesquisadores.
Procurada pela BBC News Brasil para comentar a situação do Inpa, sua diretora, a bióloga Antonia Maria Ramos Franco Pereira, não respondeu aos pedidos de entrevista.
As condições enfrentadas pelo Inpa e pelo Museu Goeldi podem piorar no próximo ano, dizem seus pesquisadores, porque o Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2020 (PLOA 2020), enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional, não prevê dotação orçamentária para os institutos de pesquisas ligados ao MCTIC, incluindo o Inpa e o Museu Goeldi.
No entanto, o MCTIC disse à BBC News Brasil que a divisão de recursos para cada unidade foi feita por meio de um plano orçamentário específico que não é publicado na PLOA 2020. Isso “significa que os institutos continuam com seus orçamentos preservados (nos mesmos patamares de 2019), embora não sejam visíveis na PLOA”.
A pasta afirmou estar “atenta e preocupada com a grave situação que afeta as unidades de pesquisa deste ministério” e que “está em negociação com o Ministério da Economia visando a recomposição de seu quadro funcional, por meio de concurso público”.
‘Fábrica’ de pessoal qualificado para a Amazônia
O Museu Goeldi foi fundado há 153 anos em Belém, no Pará, ainda como Associação Philomática — só ganharia seu nome atual cinco anos depois. Sua criação foi a concretização da primeira proposta nacional para estudo científico da Amazônia, diz Albernaz.
“A instituição figura entre os maiores museus brasileiros, está na origem da ciência nacional e influencia o conhecimento existente sobre a Amazônia com seus dados, publicações e acervos no Brasil e no mundo”, afirma a diretora da instituição.
Sua missão é pesquisar, identificar e entender a complexidade das formas de vida e das dinâmicas dos processos humanos e ambientais que ocorrem na região amazônica e nas suas áreas de fronteira. Hoje, o Museu Goeldi mantém 19 coleções científicas principais, com mais de 4,5 milhões de itens.
“Quando compartilha o conhecimento acumulado, o museu possibilita que pessoas de diferentes origens e classes sociais apreciem os processos da ciência, percebam e valorizem a riqueza da sociobiodiversidade amazônica como um valor coletivo e defendam a sua conservação”, diz Albernaz.
A história do Inpa é mais recente. Foi criado em 1952 e, nos seus primeiros anos, dedicou-se a pesquisas, levantamentos e inventários de fauna e de flora. Hoje, atua para expandir de forma sustentável o uso dos recursos naturais da Amazônia e realiza estudos científicos sobre a região amazônica para promover o bem-estar humano e o desenvolvimento socioeconômico.
É considerado uma referência mundial nos estudos da biodiversidade e dos ecossistemas amazônicos e no desenvolvimento de tecnologias para o manejo de recursos naturais e o desenvolvimento sustentável da região.
“Nosso instituto é a maior ‘fábrica’ de pessoal qualificado para ciência na Amazônia”, diz o pesquisador Mike Hopkins, responsável para a coleção de plantas da instituição e por seu programa de pós-graduação em Botânica.
Cortes e suspensões de bolsas
Mas as suspensões e ameaças de corte de bolsas de pesquisa e pós-graduação conferidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao MCTIC, e pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, podem afetar este papel que as instituições vêm cumprindo.
Neste ano, o governo bloqueou recursos para estas agências ao afirmar ser uma medida necessária para lidar com o déficit fiscal. Isso afetou a concessão de bolsas para estudantes e pesquisadores.
De acordo com o Capes, há atualmente 7.699 bolsas congeladas e um total de 87.018 bolsas ativas. Em agosto, o CNPq suspendeu 4,5 mil bolsas que não estavam sendo usadas. A instituição também anunciou neste ano que o corte em seu orçamento ameaçava o pagamento dos seus mais de 80 mil bolsistas a partir de outubro. No entanto, a liberação de recursos adicionais pelo Congresso e pelo governo garantiu o cumprimento destes compromissos até o final do ano.
“Até agora conseguimos remanejar recursos para nenhum aluno sofrer muito”, afirma Hopkins. “O maior problema é falta de certeza sobre o que vai acontecer no futuro. Estamos sob pressão intensa para planejar melhor e com mais antecedência, mas nunca sabemos quais recursos teremos no ano que vem e qual vai ser o tamanho dos cortes contínuos.”
Marlucia Bonifacio Martins, coordenadora do departamento de zoologia do Museu Goeldi, os cortes de recursos afetam a renovação de bolsas e a possibilidade de realizar novos projetos no futuro. “Tive um bolsista que faleceu e sua bolsa não foi substituída. Outro desistiu da bolsa após uma interrupção de pagamento por três meses”, diz Martins.
Martins afirma que o impacto da redução da oferta de novas bolsas de pós-graduação é ainda maior na região amazônica porque a maioria dos alunos são das camadas mais pobres da sociedade e não têm como fazer uma pós-graduação e se manter sem este recurso. “Dificilmente, eles conseguem trabalhar e dar conta de realizar um mestrado ou doutorado. O que mais perdemos com os cortes são recursos humanos.”
O MCTIC disse ter feito um levantamento de necessidade de força de trabalho de todas as unidades de pesquisa, o que demonstrou haver necessidade de preencher um total de 1.050 vagas, entre elas: 248 analistas, 253 assistentes, 244 tecnologistas, 92 técnicos e 213 pesquisadores. No caso específico do Inpa e do Museu Goeldi, seriam 99 e 47 cargos respectivamente, entre pesquisadores, técnicos e outros servidores.
O MCTIC afirmou ainda que, “em um cenário de restrição orçamentária, tem priorizado os recursos para seus institutos de pesquisa e entidades vinculadas. O MCTIC informa que tem atuado junto ao Ministério da Economia e ao Congresso Nacional para maior disponibilização de recursos em seu orçamento” e que “mantém permanente diálogo com os gestores de suas entidades vinculadas para que os recursos sejam otimizados, minimizando o impacto em suas atividades”.
‘Sem valorização, instituições serão condenadas à irrelevância’
O pesquisador Adalberto Luis Val, que dirigiu o Inpa entre 2006 e 2014, diz que tanto as informações técnico-científicas já disponíveis quanto a produção de novos dados de forma robusta são fundamentais para que o país seja capaz de lidar com os desafios na Amazônia.
“A região representa quase 60% do território brasileiro e, por décadas, tem clamado por inserir-se na agenda nacional. No entanto, até hoje, recebe menos de 3% dos investimentos nacionais em ciência e tecnologia. Aliás, até hoje não, porque em 2019 não houve programas estruturados de investimentos na área na Amazônia”, afirma Val.
O pesquisador afirma a falta de pessoal qualificado nas instituições de pesquisa e universidades compromete a produção de informações consideradas essenciais na gestão de diversas ações na região.
“O Inpa pede a contratação de profissionais qualificados há décadas, sem sucesso. Com o passar do tempo, como o quadro de pessoal não tem ao menos sendo mantido, a situação tornou-se crítica na instituição, que já foi a principal produtora de informações sobre a Amazônia.”
Val afirma que a produção científica do Inpa só não se tornou insignificante por causa dos integrantes de seus programas de pós-graduação e dos pesquisadores que seguem na ativa apesar de já poderem se aposentar. “Insistem em continuar trabalhando e produzindo informações sobre a Amazônia, porque conhecem profundamente a importância dessa região para a humanidade.”
Por enquanto, diz a diretora do Museu Goeldi, não existe um perigo imediato que a instituição feche as portas, mas ela não descarta essa possibilidade.
“Esse risco existe de fato. Já estamos vivenciando um processo de perdas de lideranças importantes na pesquisa, seja por aposentadoria ou evasão para o exterior. Se não houver recomposição urgente do quadro técnico-científico, o esvaziamento é uma consequência”, afirma Albernaz.
“Sem valorização do conhecimento científico para tomada de decisões e geração de tecnologias adequadas e adaptadas às regiões brasileiras, as instituições serão condenadas à irrelevância.”