Governo sequer contabiliza crimes contra indígenas

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Foto: Facebook apiboficial

O assassinato de mais um integrante do grupo guardiões da floresta, que protege terras indígenas na região de Araribóia, no Maranhão, colocou em evidência a impunidade dos crimes contra indígenas. Entidades que trabalham na questão alertam que, na maioria dos casos, sequer há investigação. Os ataques e assassinatos costumam ser enquadrados como crimes comuns, portanto não são incluídos nas estatísticas específicas sobre os indígenas.

Paulo Paulino Guajajara, 23 anos, foi perseguido e alvejado com um tiro no pescoço por madeireiros ilegais enquanto caçava nos arredores de Bom Jesus das Selvas. Ele estava acompanhado do líder guajajara Laércio, que foi ferido, mas conseguiu fugir. Paulo foi o quarto guardião morto desde 2015.

O geógrafo e ex-especialista da Funai em índios isolados Carlos Travassos era amigo de Paulo, com quem trabalhava desde a fundação do grupo de protetores da floresta. A iniciativa começou em 2012 justamente para preencher as lacunas do Estado.

“Era um jovem muito especial para o grupo porque o avô dele foi o guajajara que idealizou a criação dos guardiões. Em 2007, houve o assassinato do indígena chamado Tomé, por madeireiros, depois que o avô do Paulo reteve um caminhão de madeireiros que queria passar na frente da aldeia deles, numa região de mata muito preservada onde habitam índios isolados awa-guajá”, relembra Travassos, ainda abalado pela morte de Paulo.

Agravamento de violência histórica

O Maranhão, o estado com o maior índice de pobreza do Brasil e com uma economia dependente da mineração e da extração da madeira, sempre foi uma região particularmente violenta para os indígenas. No entanto, a eleição do presidente Jair Bolsonaro resultou num aumento dos ataques e atos de intimidação, constata Carlos.

“Sempre houve muita invasão e violência nessa região. Mas o que percebemos no último ano é que o conflito direto não era o caminho preferencial dos invasores”, afirma o geógrafo. “No último ano, só houve duas ações de fiscalização, ambas recentes e que só ocorreram depois de várias denúncias. Ou seja, a ausência praticamente total de fiscalização deu uma liberdade muito grande para a atuação desses núcleos criminosos.”

Na semana passada, bases da Funai em Rondônia e no Amazonas também foram alvo de tiros. Para Cesar Muñoz, pesquisador-sênior da organização Human Rights Watch no Brasil, os madeireiros e garimpeiros ilegais aproveitam que a impunidade reina.

“Na última década, houve mais de 300 assassinatos em contexto de conflitos pelo uso da Terra na Amazônia, conforme a Comissão Pastoral da Terra, que é a única entidade que documenta esses casos. Não há nenhuma autoridade que faz isso. Desses 300 assassinatos, só 14 foram a julgamento, uma proporção muito pequena”, frisa o pesquisador. “No Maranhão, olhamos todos os casos de assassinatos de indígenas desde 2015, e nenhum caso foi a julgamento. Zero. E não é só isso: não houve sequer denúncia contra ninguém.”

Indiferença do poder público

Cesar ressalta que a ausência de estatísticas oficiais sobre os ataques simboliza o descaso das autoridades por essas populações, nas mais diferentes esferas do poder.

“Nenhuma autoridade estadual ou federal tem o controle sobre a violência contra as terras indígenas e os pequenos agricultores pelos madeireiros. O que constatamos é um aumento das ameaças e intimidações, conforme denúncias feitas ao Ministério Público Estadual ou Federal”, observa.

Um dos poucos relatórios sobre a questão foi divulgado em setembro pelo Conselho Indigenista Missionário, ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Segundo o levantamento, o número de invasões a terras indígenas nos nove primeiros meses de 2019 aumentou 44% em relação a todo o ano passado, passando de 111 (em 2018) para 160 (de janeiro a setembro de 2019). E o ano ainda nem acabou.

Pressão internacional

Sarah Shenker, porta-voz da organização britânica Survival International, que trabalha há 50 anos para preservar indígenas ameaçados, confirma a alta dos relatos de ataques. Ela afirma que o governo brasileiro não está cumprindo o seu dever constitucional de proteger essas populações.

“Isso, com certeza, é resultado das tentativas do presidente de abrir as terras indígenas para o agronegócio e a mineração, e também da retórica do presidente, que está encorajando os invasores a entrar nas terras indígenas. Eles estão sentindo como se agora tivessem um sinal verde para invadir”, sublinha a ativista.

Nesta semana, uma comitiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) iniciou um giro por 12 países da Europa para denunciar o “genocídio” em curso no país. Eles esperam que a comoção mundial causada pelas queimadas na Amazônia poderá aumentar a pressão internacional sobre o governo Bolsonaro, e defendem medidas como a anulação do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.

Da RFI