Novo governo boliviano quer a cara da juventude classe média
Alberto Sassín, de 21 anos, aluno do quarto ano do curso de Comunicação Social, conta com orgulho que não dorme em uma cama limpa há mais de duas semanas. Ele faz parte da brigada responsável pela barreira improvisada em uma esquina da Rua Potosí que dá acesso à Praça Murillo, no centro de La Paz.
Ele tem passado as noites ali com mais uma dúzia de colegas da faculdade armados com tacos de beisebol e escudos feitos de latão para impedir que apoiadores do ex-presidente Evo Morales ocupem o centro de poder da capital boliviana.
Antes do dia 21, quando ficaram evidentes as suspeitas de fraude nas eleições do país andino, Alberto nunca tinha participado de um ato político. O rapaz de classe média alta admite que sofreu influência dos protestos no Chile, também liderados por jovens.
Uma das diferenças entre a crise que levou à queda do ex-presidente da Bolívia Evo Morales no domingo passado em relação às outras dezenas que sacodem o país há décadas é o protagonismo dos jovens.
Mobilizados via WhatsApp, eles se articularam para levantar dezenas de bloqueios que tornam La Paz quase intransitável, conferir as listas de votação, marcar manifestações e levantar ajuda material para manter os movimentos que levaram à renúncia de Evo.
Desde o início da crise, no dia 21, todas as universidades de La Paz tiveram as atividades paralisadas. Oito dos dez mortos em confrontos contabilizados até quinta-feira tinham até 22 anos de idade.
“A história dessas semanas poderia ser contada como uma insurreição ética que teve como protagonistas principais os jovens de classe média da Bolívia”, disse o analista político Roberto Laserna. “Não se trata de desmerecer a participação em massa e decisiva de todos os setores, com papel fundamental das mulheres, mas o movimento foi iniciado por jovens de classe média e foram eles que deram a tônica dos protestos”, completou.
Agora, na condição de protagonistas, os jovens bolivianos querem mudanças mais profundas na política. Em uma reação semelhante à ocorrida em várias partes do mundo, eles rejeitam os políticos tradicionais como os dois candidatos da eleição do dia 20, Evo e o também ex-presidente Carlos Mesa, da União Democrática (UD), e apostam no surgimento de uma nova opção eleitoral vinda da sociedade civil.
Neste cenário surge com força o nome do advogado Luís Fernando Camacho, de 40 anos, presidente do Comitê Cívico pró-Santa Cruz, que liderou a insurreição contra Evo manejando um discurso radical, por vezes violento, e uma bíblia na mão.
“Camacho, sim, é uma opção. Ele motivou e uniu as duas regiões da Bolívia, ocidente e oriente, que sempre estiveram muito separadas”, disse Vivi Rodríguez, também estudante de Comunicação Social.
Esquerda. No outro polo da disputa política a bailarina e atriz Cintia Cortez, de 27 anos, moradora de El Alto, teve de correr das bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela Polícia Nacional contra manifestantes que protestavam contra o governo da autoproclamada presidente interina, Jeanine Áñez.
Com uma wiphala (a bandeira multicolorida que representa o orgulho indígena) ela tem se manifestado ao lado de defensores de Evo desde que ele renunciou sob acusações de fraude eleitoral e pressões de manifestações populares e das Forças Armadas, mas não defende a volta do ex-presidente ao poder.
“Decidi vir para cá quando vi um vídeo dos opositores ao governo queimando a wiphala como forma de festejar a queda de Evo. Mas o que eu quero é que venha um líder novo que dê continuidade ao processo de mudança. Agradecemos a Evo, mas queremos novos líderes, não necessariamente do MAS (Movimento ao Socialismo, partido do ex-presidente)”, disse Cintia.
Entre os jovens que defendem a renovação da esquerda boliviana, o nome mais citado é o da senadora Adriana Salvarierra, que aos 30 anos já foi presidente do Senado, cargo ao qual renunciou no domingo passado, juntamente com Evo.
Segundo analistas, a renúncia do ex-presidente também pode arejar a esquerda boliviana. “Um dos efeitos dessa crise é a queda do tabu no MAS de que só Evo pode ser candidato. Nomes como Adriana e a deputada Susana Rivero surgem neste cenário”, disse o cientista político Marcelo Arequipa, da Universidade Católica.
O aumento da participação dos jovens na política é visível desde que Evo decidiu desrespeitar o resultado do plebiscito realizado em fevereiro de 2016 que o proibia de disputar o quarto mandato. Em meados deste ano, também foram jovens que provocaram um incêndio na região de Chiquitania em protesto contra a política ambiental de Evo.
Para o analista Gonzalo Mendieta, a visibilidade conquistada pelos líderes civis dos protestos que derrubaram Evo nas últimas semanas já os coloca no centro do debate eleitoral. “Uma das discussões das próximas semanas é como os cívicos vão viabilizar suas candidaturas. Creio que Camacho pode ser candidato, sim. Ele ganhou muita notoriedade”, afirmou.
O governo autoproclamado tem prazo constitucional de 90 dias para organizar novas eleições gerais na Bolívia.