Brigada De Alter.

ONG acusada de incêndio na Amazônia é vítima de ‘armação’

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DOCUMENTOS, VÍDEOS, INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS, uma investigação de dois meses. Policiais de óculos escuros, mídia devidamente avisada e pautada, fotografias de divulgação, coletiva de imprensa marcada. Tudo pronto para a notícia: polícia prendeu quatro brigadistas ligados à ONGs acusados de atearem fogo na mata em Alter do Chão para receber dinheiro. Saiu em todos os jornais. No dia seguinte, Bolsonaro pisaria pela primeira vez na Amazônia desde a crise internacional provocada pelas queimadas na região. Um roteiro estranhamente sincronizado.

Os presos são Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Aron Cwerner, membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, no Pará. Eles foram detidos ontem sob a acusação de terem provocado um incêndio criminoso na Área de Proteção Ambiental da região – levados à cadeia, tiveram os cabelos raspados. A polícia também apreendeu equipamentos na ONG Saúde e Alegria, que atua na região, e na qual um dos brigadistas trabalha.

Segundo a Polícia Civil, responsável pela investigação, os brigadistas, ligados à ONG, teriam elaborado plano de colocar fogo na floresta para escandalizar o planeta e receber doações de ONGs internacionais para combater o incêndio que eles mesmos teriam iniciado. “A pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações como do ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse o delegado José Humberto Melo Jr. na coletiva de imprensa.

Melo Jr. falou à Globonews que a polícia investigava a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso quando desconfiou de um grupo que, segundo ele, tinha “vantagens financeiras” com os incêndios. Grampearam os brigadistas e usaram os diálogos para fundamentar a acusação. Enquanto ele dava entrevista, a Globonews cravou no letreiro na tela: “brigadistas desviavam as doações para combate a incêndios”.

Como provas, a polícia divulgou gravações de conversas dos brigadistas. Também mencionou um vídeo divulgado pelo próprio grupo. “Eles gravaram o início de um fogo, de uma queimada. Só que só estavam eles”, disse o delegado. “Ali não teria como começar um fogo se não fosse por eles”. Esse é um dos vídeos que os brigadistas divulgaram na época:

A defesa dos brigadistas diz que eles são inocentes e que não teve acesso aos vídeos usados como evidências pela polícia e que, por isso, tem duas hipóteses. A primeira é de que “as imagens sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo controlados são criados para exercícios práticos”, feitas com apoio dos bombeiros e com licenças emitidas pelos órgãos responsáveis. A outra é de que a ação mostre uma tática conhecida como “fogo contra fogo”, também realizada em conjunto com os bombeiros para proteger áreas.

As conversas do grupo também foram divulgadas com pirotecnia. A mídia noticiou frases ditas pelos brigadistas que, segundo a polícia, comprovariam a intenção deles de provocar incêndio para ganhar dinheiro. “A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Vaquinha nossa. Tá maravilhoso!”, diz um dos brigadistas em uma conversa. “Tirem suas próprias conclusões”, tuitou o ministro Ricardo Salles:

Mas o blog Ambiência, da Folha, teve acesso aos diálogos completos. E eles mostram que, de fato, os brigadistas falaram sobre dinheiro de doações — mas discutiam quais exatamente seriam as contrapartidas para ele. “Com dúvidas básicas que mostram inexperiência e preocupação com a correção, um dos brigadistas chega a perguntar se precisaria devolver o equipamento após o contrato, ao que o representante da WWF responde ‘não, é de vocês’”, diz o texto. Essas partes da conversa, é claro, não foram divulgadas.

A brigada, criada em 2018, faz parte da ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, criada para articular ações de combate a incêndios na região. Em nota, a defesa dos brigadistas afirma que fez a declaração dos valores recebidos no fim de setembro e que as doações posteriores ainda estão sendo consolidadas em um relatório. Segundo os brigadistas, o valor recebido da WWF foi uma parceria com o instituto para aquisição de equipamentos para a brigada, e as contas serão prestadas no dia 10 de dezembro.

Uma ONG para chamar de culpada

Nesta manhã, a justiça do Pará decidiu manter os quatro brigadistas — todos sem antecedentes criminais — presos. “Mantive as prisões porque as acusações são muito graves de uma possível prática reiterada de incêndios criminosos. O que não significa que eles sejam culpados”, disse o juiz Alexandre Rizzi.

Hoje, o presidente Jair Bolsonaro chega à Amazônia. É a primeira vez que ele pisa na região depois da crise internacional provocada pelos incêndios e pelo desmatamento na área, que chegaram a alimentar, até mesmo, a paranóia de militares e do governo sobre a internacionalização da Amazônia.

Entre agosto e setembro deste ano, o mundo assistiu estarrecido às imagens de queimadas e a divulgação de números do aumento do desmatamento na região. Uma das primeiras reações do presidente foi acusar ONGs que atuam na região de provocarem os incêndios para “chamar a atenção” e conseguir dinheiro. Bolsonaro, como de hábito, não apresentou provas da sua acusação.

“O crime existe, e isso aí nós temos que fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro”, ele disse.

Não foi a única vez: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também insinuou que o Greenpeace seria responsável pelo derramamento de óleo na costa do Nordeste, outro desastre ambiental deste governo.

Com a midiática operação policial que prendeu os brigadistas, Bolsonaro e Salles podem agora justificar a acusação contra as supostas ONGs criminosas. A prisão se encaixa perfeitamente na estratégia do governo de demonizar e enfraquecer organizações não governamentais, um estágio fundamental para implantar o plano do Governo Bolsonaro para a floresta: abrir espaço para mais monocultura, pecuária e mineração. E a polícia civil do Pará deu o que eles precisavam para mostrar serviço na primeira visita do presidente à região depois da crise.

Há uma investigação paralela que corre no Pará para encontrar os responsáveis pelo Dia do Fogo, ação de fazendeiros da região para provocar incêndios ao longo da BR-163. Tocada pela Polícia Federal, ela mostrou que os responsáveis articularam a queimada via WhatsApp — em um grupo que tinha, inclusive, um delegado da Polícia Civil — para dificultar a fiscalização. O grupo é apoiador das políticas de Bolsonaro para a região. Até agora, ninguém foi preso e nenhum acusado foi exibido como troféu na mídia.

As prisões dos brigadistas são suspeitas. Não há nada nos diálogos que configurem provas robustas contra eles. O que existe é apenas interpretação de trechos de diálogos que, dependendo da inclinação ideológica do leitor, pode significar uma coisa ou outra. O material, que é dúbio, não deveria ser suficiente para um juiz privar um cidadão da liberdade sem condenação.

Mas as prisões criam lastro para uma acusação rocambolesca que favorece o presidente – um presidente que tinha viagem marcada para a região em poucos dias. Até que a polícia apresente provas mais fortes, o que temos é uma tentativa da polícia e do juiz de mostrar serviço para agradar Bolsonaro e justificar a ideologia de criminalização de ONGs, uma tese estranhamente popular entre autoridades das profundezas da Amazônia. Uma tese que, enquanto não for provada, é simplesmente falsa.

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