Os riscos da banalização do AI-5 pelo bolsonarismo

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Foto: Reprodução

A historiadora Emília Viotti da Costa cunhou aquela que é a mais famosa sentença sobre a importância de um país aprender a não esquecer: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. Quando as citações ao passado são frequentes, no entanto, elas podem servir a propósitos bem menos nobres. É o que ocorre no momento em torno das lembranças do AI-5. Como em uma valsa perversa à beira do abismo com seus adversários, o governo acena com o fantasma do ato institucional que aprofundou a repressão no período militar como possível antídoto ao que enxerga como sinais de radicalização no horizonte, enquanto os opositores se alimentam do discurso autoritário para pisar fundo na tática da polarização.

Na turma governista, o deputado Eduardo Bolsonaro foi o primeiro a citar irresponsavelmente o AI-5 em uma entrevista concedida em outubro. Com a soltura de Lula, que saiu da cadeia na versão jararaca, o fantasma da ditadura voltou a ser exibido — dessa vez, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista em Washington realizada no último dia 25, quando foi indagado sobre as convocações do petista para protestos de rua. “Não se assustem se alguém então pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, afirmou. No caso do filho, o presidente deu um puxão de orelha no Zero Três pela declaração. Diante da repercussão das palavras de Guedes, preferiu fazer piada. “Só falo de AI-38. Trinta e oito é meu número”, disse, fazendo referência à numeração do seu partido, o Aliança pelo Brasil.

A recorrência ao ato da ditadura é incômoda porque banaliza aquilo que deveria ser abominado. O AI-5 permitiu à ditadura fechar o Congresso, intervir em municípios e estados, acabar com sindicatos, perseguir e prender opositores e cassar direitos e garantias individuais. O pretexto para o golpe dentro do golpe foi, por ironia, um discurso: o do deputado Márcio Moreira Alves, na Câmara, pedindo boicote aos militares. Nas citações recentes ao AI-5, a Câmara também reagiu ao impulso autoritário. “Por que alguém vai propor o AI-5 se o ex-presidente Lula — que acho que está errado também porque está muito radical — estimula a manifestação de rua? O que uma coisa tem a ver com a outra?”, criticou o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ). E foi ao ponto: “Não dá mais para usar a palavra AI-5 como se fosse bom-dia, boa-tarde”, disse. Nesta semana, o Conselho de Ética da Câmara abriu um processo contra Eduardo Bolsonaro por causa de sua declaração sobre o AI-5, após representação feita pelos partidos de oposição (PT, PSOL, PCdoB e Rede) pedindo a cassação de seu mandato.

O temor do governo é que se repitam por aqui protestos violentos como os do Chile. Não há, porém, multidões nas ruas, apesar da paranoia oficial. E, mesmo se lá estivessem, manifestações fazem parte do jogo democrático. “O discurso é uma tentativa de ‘naturalizar’ o AI-5 para poder justificar medidas de exceção numa situação em que o governo venha a enfrentar reveses”, diz o cientista político José Álvaro Moisés, da USP. Trata-se de um jogo de retroalimentação bastante perigoso. O governo se aproveita da radicalização petista para esgrimir o monstro da repressão. Lula e o PT se valem do autoritarismo governista para radicalizar, tentando mobilizar a militância e levar gente às ruas, o que não têm conseguido. Um embala o outro. O país só perde com isso.

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