Bolsonaro governa como se ainda estivesse em campanha eleitoral

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O primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro foi de acenos sob medida para determinados estratos sociais. Com uma aprovação de pouco mais de um terço do eleitorado, segundo pesquisas recentes, o presidente manteve o tom de campanha e comandou o país de forma inédita, avaliam estudiosos do bolsonarismo, com uma gestão pautada para a formação de bases populares específicas, contrastando com o discurso habitual de políticos de pretender governar para todos.

O GLOBO listou medidas provisórias, decretos, projetos de lei e discursos de Bolsonaro que, ao longo de 2019, contemplam importantes bandeiras do governo. As ações foram divididas nos temas “bala”, “bíblia”, “boi” e “volante”, e indicam o empenho do presidente em agradar seu eleitorado mais fiel, mesmo que, em alguns casos, como a flexibilização do acesso a armas e as propostas para alterar o Código de Trânsito, a maioria da população rejeite as mudanças, como já apontou o Datafolha.

— Pela primeira vez o presidente não quer governar para a maior parte da população, apesar de no passado isso ter sido mais uma retórica do que realidade. Agora nem isso: a própria retórica deixa claro que ele governa para sua base. O que a maior parte da população pensa não importa — avalia a antropóloga Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Apoiadores “heavy”

Segundo o Datafolha, apenas 14% dos eleitores do presidente aprovam e confiam em tudo que ele diz, são os chamados “bolsonaristas heavy”. Para o pesquisador do Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença da Universidade de São Paulo (USP) Lucas Bulgarelli, o governo atende a “partes radicalizadas” e, assim, cria a percepção de que tem uma base popular ativa.

— O governo precisa manter acesa sua base popular. Mas essas demandas muitas vezes sequer atendem aos segmentos como um todo. É muito nítido que a maior parte da população evangélica sequer concorda com tudo aquilo que o governo diz. Há muitos que discordam da questão das armas, por exemplo — pondera Bulgarelli, que tem analisado engajamentos políticos sobre gênero e sexualidade entre evangélicos.

Instrutor de tiro e policial no Rio, João Ururahy conta que a eleição de Bolsonaro afetou seu trabalho de forma positiva, seja pela flexibilização da compra de armas para agentes de segurança ou pelo discurso do presidente. “É um governo que apoia e entende a sua luta”, explica.

Dono de quatro fazendas de gado no Pará, o produtor rural Maurício Fraga vê como positivas as medidas do governo. Para ele, ainda que tímidas, as decisões sobre regularização fundiária são as mais importantes: “Garantem a segurança jurídica, facilitam o acesso ao crédito e inibem novas invasões”.

Para o enfermeiro ThiagoSilva, que é evangélicoe apoia o presidente, Bolsonaro não só governa para uma religião. Como conservador, concorda que o governo deva restringir certos temas na escola. “É lugar de aprender a somar e a escrever direito”, explica.

Como motorista e entregador por aplicativo, Jonathas Costa de Oliveira passa maior parte do dia no trânsito. No entanto, ele não concorda com todos os pontos do projeto deBolsonaro para flexibilizar regras em análise no Congresso: “Sou a favor dos radares, mas até um certo horário”.

Assim que foi eleito, Bolsonaro apareceu na televisão orando para agradecer sua vitória. Era o primeiro aceno a uma de suas principais bases. A aproximação de Bolsonaro com os evangélicos — grupo no qual sua taxa de aprovação é maior — se dá desde a escolha de nomes conservadores para o governo a promessas contra pautas ligadas, por exemplo, a gênero.

O presidente já anunciou que fará um projeto de lei para proibir a “ideologia de gênero” no ensino fundamental — assunto que já chamou de “coisa do capeta” durante sua participação em junho na Marcha para Jesus, a primeira de um presidente do país. Outro aceno foi a afirmação de que nomeará um ministro “terrivelmente evangélico” ao Supremo Tribunal Federal (STF), expressão usada outras vezes ao se referir ao advogado-geral da União, André Luiz Mendonça, e descrever o perfil de sua preferência para o comando da Ancine — na ocasião, afirmou que o novo presidente da agência deveria saber “recitar 200 versículos”.

O gesto de simular armas com as mãos é uma marca do presidente antes mesmo de ter sido eleito. A proximidade com a categoria de policiais e os colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) se deu logo nos primeiros dias do governo, com um decreto que flexibilizava a posse de armas. De lá pra cá, entre idas e vindas, outros sete foram editados sobre o tema, parte revogada após reação do Congresso e do Ministério Público Federal. Também houve a tentativa de aprovar a “excludente de ilicitude”, isenção de pena para agentes de segurança pública que matem em legítima defesa, medida que acabou retirada do pacote anticrime, do ministro Sergio Moro, e que agora tenta aprovar em um projeto de lei voltado para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Contra a “velha política”

Bolsonaro também procurou beneficiar produtores rurais com propostas que focam tanto no âmbito econômico, quanto burocrático e até ideológico. Nem todas, porém, foram concretizadas. A primeira medida foi transferir a demarcação de terras indígenas para a alçada do Ministério da Agricultura, o que foi barrado pelo Congresso.

— Não importa se o projeto vai ser aprovado. Bolsonaro tem uma retórica de que não deixam ele governar, de que a velha política não deixa, o Congresso não deixa. Mesmo que pareça perda de tempo, ele passa a imagem de que está tentando — diz Kalil.

Das propostas que vingaram, Bolsonaro conseguiu expandir o financiamento para o agronegócio e reduzir taxas de juros. Também pôs fim à obrigatoriedade do trabalhador rural ir a órgãos públicos para comprovar tempo de serviço exigido para a aposentadoria.

As medidas voltadas para o trânsito foram outra fixação. Além da guerra contra os radares de velocidade, o governo apresentou um projeto de lei que altera regras com impacto para motoristas, entre eles profissionais de aplicativos de transporte e os caminhoneiros. Entre as propostas, que já enfrentam resistência no Congresso, estão o fim do exame toxicológico obrigatório para profissionais e o aumento para 40 pontos do limite para perder a carteira.

Outro nicho que chama atenção por ter entrado na pauta do governo em 2019 são os gamers. Em agosto, Bolsonaro rebaixou alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializado (IPI) sobre videogames. Também fez uma postagem em seus perfis em que aparece jogando. Para pesquisadores, o grupo, que é formando principalmente por jovens, é importante no engajamento de pautas bolsonaristas e na propaganda pró-governo na internet. Professora da Escola de Comunicação da UFRJ, Rose Marie Santini diz que são justamente as redes sociais o principal modo de o governo acionar sua base.

— A militância amplifica, dá eco ao que é dito, e há a impressão de que o apoio é grande, que há maioria, que está tudo dominado — diz Santini.

O Globo