Bolsonaro quer ampliar sigilo sob relatórios de redes sociais

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Foto: Eraldo Peres/AFP Photo

O governo Jair Bolsonaro utiliza a Lei de Direitos Autoriais para colocar sob sigilo todos os relatórios de monitoramento das redes sociais do Planalto. Segundo especialistas ouvidos pelo ‘Estado’, a medida não encontra respaldo legal e viola as prerrogativas de transparência previstas na Lei de Acesso à Informação (LAI).

Em abril, o ‘Estado’ obteve acesso a um dos relatórios sob sigilo, que apontam as repercussões de atos do Planalto e falas de aliados e adversários. À época, o documento mostrava que o Planalto dividia usuários das redes entre aqueles de ‘viés de esquerda’ e ‘apoiadores’, destacando ataques e respostas a atos do governo com potencial de viralização.

A reportagem solicitou, via LAI, todos os relatórios produzidos de 1º de janeiro a 23 de novembro, data do pedido. Inicialmente, o Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secretária Especial de Comunicação negou acesso alegando que se tratam de documentos preparatórios, ou seja, que ainda poderiam ser utilizados para alguma política futura do governo, sem, no entanto, informar quando estariam disponíveis para divulgação.

Após recurso do ‘Estado’, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo mudou a justificativa, alegando que os relatórios estariam sob sigilo por serem propriedade intelectual da agência de publicidade contratada para o serviço e, por isso, sua divulgação violaria a Lei de Direitos Autorais.

“O que se percebe é que qualquer texto que produza algum tipo de inovação merece ser qualificada como ‘obra científica’, apta a receber as proteções da Lei de Direitos Autorais, tais como a proibição de publicação sem o consentimento do autor”, aponta o governo. O relatórios são produzidos por uma agência de publicidade contratada pelo Planalto e paga com dinheiro público.

Falta de transparência. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a desculpa apresentava pelo governo, viola as prerrogativas de sigilo da Lei de Acesso à Informação. A LAI prevê o sigilo sob documentos que coloquem em risco a soberania nacional ou coloquem em risco o Estado, a estabilidade financeira do País ou a população. A prerrogativas estão previstas no Art. 23 da legislação e preveem sigilo de cinco a 25 anos.

Segundo o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Luca Belli, especialista em governança e regulamentação do acesso à internet, a justificativa apresentada pela Secom é ‘curiosa’ por utilizar uma desculpa não prevista na LAI. “Eu não achei nenhuma justificativa sólida”, resume.

“A concessão de direitos autorais ao autor do relatório, considerado instrumental para a tomada de decisões públicas, não é uma justificativa oferecida para a LAI, que define de maneira exaustiva os casos de sigilo”, afirma. “Existem tipos de sigilo, mas não são os destacados nesta resposta. Então, é curioso que a justificativa, genérica, não especifique quais são as razões desse sigilo, nem quando esse sigilo poderia ser derrubado”.

Documentos postos sob sigilo pelo governo devem, por lei, serem classificados com o grau de segredo e o período em que se tornarão públicos. Nos casos em que um documento é considerado preparatório, ou seja, que podem ser utilizados para uma decisão da administração pública, também é preciso informar qual ato e quando, especificamente, os relatórios estão disponíveis para consulta pública.

De acordo com o mestre em administração pública e especialista em transparência Fabiano Angélico, os relatórios de monitoramento de redes sociais, mesmo produzidos por uma empresa privada, devem ser divulgados por se terem sido pagos com verba pública.

“A Lei de Direitos Autorais não parece ser um caso de restrição de acesso, ainda mais quando se fala de um serviço contratado pelo governo e pago com dinheiro público. A LAI é muito clara: mesmo informações produzidas por privados, mas custodiadas por dinheiro público, devem ser divulgadas”, afirma. “Fazendo uma comparação com o futebol, na dúvida, é gol. Na dúvida, é transparência. Você tem um princípio norteador da administração pública que a é a publicidade. Esses princípios servem como baliza para casos em que existe alguma margem para dúvida”.

Em novembro, a Creative Commons Brasil emitiu nota sobre as restrições impostas pelo governo sob a justificativa da Lei de Direitos Autorais. A organização sem fins lucrativos, voltadas para discussões sobre a legislação, afirma que ela ‘não deve ser utilizada para impedir que cidadãos tenham acesso a informações de interesse público’.

“Não nos parece correto o entendimento de que palavras-chave e relatórios de monitoramento produzidos como materiais técnicos, para subsidiar a atividade oficial do governo, estão protegidos por direitos autorais. Ainda que sua natureza, que não conhecemos em razão da recusa ao fornecimento da informação, seja de obra intelectual, os princípios constitucionais de acesso à informação por parte do cidadão e o dever de publicidade por parte do Estado devem prevalecer”, afirma.

A nota foi emitida após o governo também negar acesso aos documentos ao jornalista Luiz Fernando Toledo, vice-presidente da Fiquem Sabendo, agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação.

“Esse tipo de negativa impacta a credibilidade do órgão público aos olhos da população em relação ao cumprimento da LAI. É dever do Estado informar tudo que não é sigiloso, e neste caso o órgão vem criando um motivo novo para negar os documentos a cada novo pedido ou recurso”, afirmou a Fiquem Sabendo.

Precedentes. Ao negar acesso, o governo alega um precedente jurídico da Controladoria-Geral da União (CGU), responsável por analisar recursos da LAI em terceira instância. A gestão Bolsonaro, no entanto, utiliza decisão sobre compartilhamento de reportagens coletadas no clipping (processo de seleção de matérias) do Ministério das Relações Exteriores.

Outros precedentes envolvendo a divulgação de relatórios de redes sociais, no entanto, foram ignorados. A reportagem identificou dois precedentes no sistema de buscas e respostas da LAI envolvendo relatórios de redes sociais. Ambos foram feitos ao Ministério da Saúde e tiveram respostas disponibilizadas. Em um dos casos, o processo chegou à CGU, que determinou a divulgação dos relatórios.

Estadão