Com Bolsonaro, informalidade bate recorde em 2019

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O ano de 2019 foi marcado por um desemprego ainda resistente, mas com a quantidade de pessoas que trabalham por conta própria e sem carteira assinada, os chamados informais, batendo sucessivos recordes históricos. A taxa de informalidade no mercado de trabalho superou o patamar de 41%, a maior proporção desde 2016, quando o IBGE passou a investigar esse índice. Ou seja, de cada 10 trabalhadores ou empregadores, 4 estão atuando na informalidade.

G1 entrevistou pessoas que encontraram no trabalho informal uma fonte de renda que ajuda na sobrevivência ou até no pé de meia. No entanto, a estudante do ensino médio, a universitária e o bacharel são o retrato de um mercado de trabalho que absorve mão de obra, mas nem sempre possibilita que os profissionais ocupem o espaço de acordo com sua formação ou seu propósito de vida. Além disso, eles acabam ganhando menos por não ter carteira assinada, que assegura os direitos previstos na CLT.

“O trabalhador desempregado passa a fazer bicos, trabalhar em novas atividades, abaixo do nível de qualificação e tempo disponível, mas ele aceita isso porque precisa gerar alguma renda para a família”, afirma o Carlos Honorato, consultor econômico e professor da FIA e Saint Paul.

Julio Cesar Martins, de 48 anos, trabalha como motorista de aplicativo desde julho do ano passado. Pode-se dizer que a mudança na vida de Martins foi radical. Antes de dirigir pelas ruas de São Paulo, o bacharel em administração de empresas havia trabalhado como supervisor financeiro com carteira assinada e todos os benefícios trabalhistas a que um funcionário CLT tem direito, como 13º salário, férias e até plano de saúde. E ainda trabalhava em horário comercial, com intervalo para almoço e folga aos finais de semana. Além de contar com uma renda de quase R$ 10 mil.

Agora que está trabalhando na informalidade após ser mandado embora, Martins precisa trabalhar pelo menos 12 horas por dia para conseguir tirar em torno de R$ 6,5 mil por mês, sem descontar as despesas com o carro como combustível e manutenção. O administrador diz que em média sua renda caiu 70%.

“Saio de casa todos os dias às 4h30 e vou até 16h. Tenho que pagar manutenção, combustível, multas, IPVA, licenciamento, limpeza, e o valor que recebo não bate com todos esses custos”, lamenta.

Martins conta que o desemprego o fez desistir do MBA em Gestão Financeira – ele conseguiu cursar apenas um semestre. Ele ainda teve que voltar para a casa dos seus pais depois de terminar um casamento de 24 anos em fevereiro de 2018.

Em meio a ajustes para se adequar a seu novo padrão de vida, ele paga o curso preparatório de vestibular para o filho, além de uma mesada toda semana. E está avaliando se compensa se cadastrar como microempreendedor individual (MEI) para contar para a aposentadoria o trabalho como motorista – ele já tem 28 anos de contribuição para o INSS.

Mas, apesar de ter feito um investimento para trabalhar como motorista, trocando seu carro antigo por um novo e mais espaçoso, ele continua enviando seu currículo para sites de emprego e redes sociais e ainda conta com uma ajuda extra dos passageiros com os quais faz networking. “Sempre que tenho uma oportunidade eu falo da minha área de atuação. E assim que surgir uma oportunidade novamente com certeza saio do aplicativo”, diz.

A estudante Gabriela Gomes dos Santos estreou no mercado de trabalho como informal. E aprendeu que a expressão “se virar”, tão usada nesses tempos de desemprego alto, pode trazer benefícios. A jovem de 16 anos vende marmitas há sete meses numa região comercial da Zona Sul de São Paulo.

“Gosto muito de trabalhar na rua, porque não gosto de me sentir presa. Tenho liberdade, posso sair cedo se eu precisar, e até folga quando vou viajar”, diz.

Gabriela trabalha para uma família que faz as marmitas em casa e as comercializa em alguns pontos da região. A jovem vende as refeições no período do almoço, durante 3 horas, de segunda a sexta.

A paixão por viajar foi uma das razões que a levou a buscar trabalho tão jovem. A vontade de ajudar nas despesas de casa e a dificuldade de ficar parada foram os outros motivos.

“O trabalho ajuda no conhecimento, a lidar com dinheiro e com as pessoas. Tinha dificuldade com isso, tem que saber lidar com as exigências dos outros”, afirma.

E o contato com os clientes a ajudou a conseguir outro “bico” aos finais de semana. A estudante revende bolos de pote e pães de mel que ela compra de uma mulher que conheceu durante a venda das marmitas. “Estava querendo viajar, aí comecei a vender para juntar mais dinheiro”, diz. A próxima viagem de Gabriela será em fevereiro para a Bahia, onde ficará 12 dias.

Além disso, Gabriela passou a vender maquiagem que ela compra em uma loja por um preço mais em conta. Com os três trabalhos, ela chega a tirar quase um salário mínimo por mês.

“Minha mãe me incentiva a trabalhar para eu poder fazer as coisas de que eu gosto porque ela não consegue bancar tudo. E eu quero ter meu dinheiro e minha independência”, diz.

À noite, Gabriela cursa o 1º ano do ensino médio. Agora a jovem aguarda o resultado do vestibulinho que prestou na Escola Técnica Estadual (Etec) para o curso de contabilidade.

A estudante diz que foi tranquilo conciliar os estudos com o trabalho. E, se passar na Etec, Gabriela já tem tudo planejado – ela fará o ensino médio na parte da tarde, após a venda das marmitas, e estudará contabilidade à noite. “Pretendo continuar no trabalho mais um ano e meio, que será o tempo para concluir a Etec”, afirma.

Além do curso de contabilidade, Gabriela tem planos de abrir uma agência de viagem – segundo ela, o trabalho na rua tem ajudado a alimentar seu sonho de empreender. Enquanto isso não acontece, ela já está programando sua primeira viagem internacional. “Quando fizer 18 anos, vou para a Disney. Já estou guardando dinheiro para isso”, avisa.

A técnica de enfermagem Luana Rodrigues, de 30 anos, conseguiu trabalhar em sua área por 5 anos, até perder o emprego com carteira registrada. Para não ficar sem renda, aproveitou sua paixão por cachorros e se cadastrou em uma plataforma de intermediação de serviços de hospedagem e passeios. Há dois anos, ela oferece seus serviços para donos de cachorros que não têm tempo de cuidar dos bichinhos.

“Sou apaixonada pelos cães, quando eu era mais nova meus pais não me deixaram ter um, e vi que seria muito bom ter essa oportunidade de cuidar de cachorros ainda ganhando dinheiro”, diz.

Luana conta que já chegou a tirar R$ 2 mil por mês hospedando os pets, quando dividia um apartamento com estudantes na região da Bela Vista, em São Paulo. “Esse dinheiro já me ajudou a pagar despesas mensais e ainda deu para fazer uma boa reserva”, conta.

Mas ela consegue compensar um pouco a perda de renda trabalhando na franquia de bolos caseiros da família, onde recebe R$ 300 por final de semana trabalhando no atendimento e na parte administrativa. E tira um pouco a cada mês dos investimentos que fez com as economias do trabalho como técnica de enfermagem e cuidadora de cachorros.

Além disso, Luana está cursando engenharia de materiais na Universidade Federal do ABC desde 2014. Como pretende se dedicar aos estudos para concluir a graduação no ano que vem, a técnica de enfermagem pretende reduzir o ritmo dos trabalhos informais. “Estou à procura de estágio na área, que é minha prioridade”, diz.

Atualmente, são 38,8 milhões de brasileiros na informalidade, um aumento de 714 mil pessoas em 1 ano. Este grupo inclui os trabalhadores sem carteira assinada (empregados do setor privado e domésticos), os sem CNPJ (empregadores e por conta própria) e os sem remuneração (auxiliares de trabalhos para a família).

E a informalidade vem ajudando na queda ainda discreta da taxa de desemprego, que recuou para o menor nível do ano no trimestre encerrado em outubro – para 11,6% –, mas ficou apenas 0,1 ponto percentual abaixo do índice no mesmo período de 2018, quando estava em 11,7%.

Os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mostram que a população no país ocupada aumentou 1,4 milhão de pessoas em 1 ano, somando 94 milhões de brasileiros. Embora a recuperação da economia tenha mostrado sinais de aceleração nesta reta final do ano, ainda são 12,4 milhões de pessoas na fila do desemprego.

A recuperação lenta do mercado de trabalho e a dificuldade de colocação ou reinserção têm levado muitos brasileiros ao trabalho por conta própria, que também é chamado de empreendedorismo por necessidade, mas em muitos casos se configuram como subempregos.

“O chamado empreendedorismo, em grande medida, reflete a necessidade de busca da sobrevivência e não uma opção sobre a modalidade da ocupação”, destaca José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do banco Fator.

O trabalho por conta própria reúne tanto os autônomos como também ambulantes, aqueles que tocam negócios de ‘fundo de quintal’ ou prestam serviços ligados a aplicativos como Uber, Rappi e iFood.

“Empresas ligadas a esse novo mundo de tecnologia aproveitam do excedente de mão-de-obra e de modo informal incorporam essa massa de trabalhadores em subempregos”, afirma Honorato.

Os trabalhadores por conta própria representam a maior fatia dos informais, com 19 milhões de brasileiros no trimestre encerrado em outubro. Em seguida, estão os empregados sem carteira assinada (12 milhões) e os trabalhadores domésticos (4,5 milhões).

Considerando também aqueles que possuem CNPJ e atuam formalizados, como os MEIs (microempreendedores individuais), a categoria por conta própria somou 24,4 milhões de pessoas no trimestre encerrado em outubro, novo recorde histórico e alta de 3,9% (mais 913 mil pessoas) em relação ao mesmo período de 2018.

O número de empregados sem carteira de trabalho assinada, por sua vez, atingiu novo patamar recorde de 11,9 milhões de pessoas, com um crescimento de 2,4% (mais 280 mil pessoas) no período de 1 ano. Já o número de trabalhadores com registro em carteira teve um avanço bem menor no período, de 1%, somando 33,2 milhões.

A maior geração de vagas informais do que formais também reflete grau ainda elevado de incerteza e otimismo dos empregadores em relação ao ritmo de recuperação da economia. “Uma empresa que contrata trabalho assume custos correntes e futuros, de modo que a decisão de contratar depende da firmeza de sua expectativa sobre a rentabilidade futura. É uma decisão, em tese, movida pelo lucro e não pela sobrevivência”, explica Gonçalves.

A lenta recuperação do emprego puxada pela informalidade também tem impacto nos salários. Segundo o IBGE, o rendimento médio dos trabalhadores ficou em R$ 2.317 no trimestre encerrado em outubro, alta de apenas 0,8% na comparação com o mesmo período de 2018. Entre os trabalhadores com carteira assinada, houve queda de 0,4%, ao passo que entre os empregados sem carteira e os trabalhadores por conta própria sem CNPJ, as altas foram de 0,6% e 1,4%, respectivamente.

Quem atua na informalidade continua ganhando bem menos. No trimestre encerrado em outubro, o rendimento médio de quem tem carteira assinada foi de R$ 2.185, enquanto que o do trabalhador sem carteira foi de R$ 1.319. No trabalho por conta própria, a renda média foi de R$ 1.321 para aqueles que não têm CNPJ.

Ou seja, além de não poder contar com direitos garantidos pela CLT como FGTS, férias remuneradas e 13º salário, o trabalhador informal recebe em média apenas cerca de 60% do que ganha quem tem carteira assinada.

avanço da informalidade também faz crescer a desigualdade de renda no país. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as duas faixas de renda mais baixas foram as únicas a apresentar queda neste ano. Em contrapartida, o seguimento mais rico da população registrou uma alta no mesmo período.

O levantamento do Ipea também mostrou que a geração de empregos com carteira assinada ao longo de 2019 contemplou basicamente uma remuneração de até dois salários mínimos. Acima de três salários mínimos não houve saldo positivo na criação de vagas formais.

O avanço da informalidade também traz um impacto negativo nas contas do governo. “Com menos trabalhadores com carteira assinada, menos arrecadação o governo terá para manter a Previdência Social”, lembra Honorato.

Para o economista Sergio Vale, da MB Associados, 2020 ainda deve ser um ano de informalidade elevada, mas a boa notícia é que o emprego formal “tem dado sinais consistentes de melhora”, com o país tendo registrado em novembro o oitavo mês consecutivo em que as contratações de trabalhadores com carteira assinada superaram as demissões no país.

No acumulado de janeiro a novembro, foram criados 948.344 empregos com carteira assinada, um aumento de 10,48% frente ao mesmo período do ano passado, segundo os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério da Economia.

Na avaliação de Vale, a melhora do emprego formal no ano que vem deverá ser puxada pelo agronegócio, construção civil e produção de veículos.

“É normal em saídas de crise como a nossa que o emprego informal cresça mais intensamente antes do formal. Muita gente ficou durante muito tempo fora do trabalho e isso causa efeitos de longo prazo na capacidade de volta dessas pessoas ao mercado”, afirma o economista. “Eu diria que essa relação tende a se inverter em 2020, com o emprego formal crescendo em ritmo mais forte do que o informal”.

O Brasil deverá, porém, levar mais alguns anos para recuperar as vagas de trabalho perdidas desde o início a crise econômica, em 2014. O estoque de empregos formais na economia chegou a 39,252 milhões no fim de outubro. No pico, no final de 2014, alcançou 41 milhões.

Segundo o economista da FIA Carlos Honorato, o emprego só voltará ao patamar pré-recessão quando a economia retomar seu fôlego e manter um ritmo de crescimento acima de 2% ao ano.

“Provavelmente, mesmo com o crescimento econômico, ainda teremos um longo período de aumento da informalidade”, avalia, citando também as mudanças estruturais em curso, com novas modalidades de trabalho e de contratação introduzidas pelo avanço tecnológico e pela reforma trabalhista.

Mesmo entre aqueles que conseguem alguma ocupação remunerada, são muitos os que trabalham menos do que gostariam. É o que o IBGE chama de subocupação por insuficiência de horas (menos de 40 horas semanais). Atualmente, são 7 milhões de pessoas nesta situação.

Já o número dos chamados desalentados, aqueles que desistiram de procurar emprego pois perderam a esperança de encontrar uma vaga, recuou um pouco em 2019, mas ainda somaram 4,6 milhões no trimestre encerrado em outubro. Outras 3,1 milhões de pessoas até poderiam trabalhar, mas alegam não ter disponibilidade ou interesse no momento.

Somados estes 3 grupos, o número de brasileiros subutilizados somou 27,1 milhões de pessoas no trimestre encerrado em outubro. Ou seja, formal ou informal, o trabalho continua em falta e distante para muita gente.

G1.