Mulheres em situação de rua são vítimas da maior parte dos casos de violência
Minoria entre os moradores de rua, as mulheres foram as principais vítimas de agressões contra esse grupo: 50,8% dos 17.386 registros de violência na população de rua de 2015 a 2017 foram contra elas. O dado, do Ministério da Saúde, leva em conta os casos em que a motivação principal do ato violento era o fato de a pessoa estar em situação de rua.
No Brasil, as mulheres representam de 15% a 20% da população de rua – o percentual varia em cada cidade e não existem dados nacionais. Na capital paulista, as mulheres representam apenas 14% das abordagens e 7% dos pernoites em abrigos da Secretaria Municipal de Assistência Social em 2018.
Moradoras de rua ouvidas pelo G1 em São Paulo acreditam que as agressões fazem parte de um ciclo de violência que começa antes da mulher sair de casa. Elas relatam terem sido vítimas de estupros, ameaças e assédio nas ruas.
“Quando a mulher vem pra rua, geralmente é porque o marido batia nela, porque ela já era agredida dentro de casa. Muitas vezes ela estava em um relacionamento abusivo e ela vem pra rua se livrar disso, mas não consegue”, diz Verônica Alves, de 29 anos, que vive em situação de rua na cidade de São Paulo desde os 18 anos.
Além das agressões físicas, as mulheres reclamam ainda da violência psicológica praticada por funcionários dos serviços de assistência social. É o que relata Suely*, de 59 anos, que hoje passa a noite em albergues da Prefeitura de SP depois de viver mais de 20 anos na rua.
“Nos abrigos eles tratam a gente assim: ‘Cala a boca, se ele tá gritando com você é porque você fez alguma coisa.’ Eles não pedem mais explicação. Não querem saber qual é o problema.”
De acordo com pesquisadores da área de assistência social, essa discrepância entre homens e mulheres nas notificações de violência ocorre por conta da reprodução da cultura machista no ambiente das ruas. Silvânia Andrade, técnica do Ministério da Saúde, avalia também que haja maior procura pelo serviço de saúde por parte das mulheres, o que resultaria em maior número de registros.
O perfil da mulher moradora de rua no município é diferente daquele do homem. Em média, elas usam menos drogas ilícitas e dormem mais em albergues. Além disso, as mulheres são mais agredidas por outros moradores de rua, enquanto os homens indicam membros das polícias como seus principais agressores.
Os dados, tabulados com exclusividade para o G1 pelo pesquisador Eduardo Rigonati e pela professora Silvia Schor, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), são do censo da população de rua de São Paulo de 2015, o último realizado na capital.
De acordo com a pesquisa, elas realmente procuram com mais frequência os serviços de saúde. Mas, apesar disso, o grupo feminino também apresenta percentuais mais altos do que o masculino em relação a várias doenças, como depressão, hipertensão, doenças do aparelho digestivo e respiratório, diabetes e doença cardíaca.
Em geral, elas ficam menos sozinhas: enquanto 79% dos homens moradores de rua de São Paulo declararam viver sozinhos, 65% das mulheres disseram que vivem com alguém.
Para o Padre Júlio Lancellotti, que há mais de 30 anos atua em defesa deste grupo na Pastoral do Povo de Rua, isso ocorre porque as mulheres buscam a proteção da vida em comunidade.
“A mulher vira uma moeda de troca na rua, ela tem que ter um dono. Elas sofrem mais violências porque nas ruas há uma disputa pela mulher”, explica Lancellotti.
“Elas veem no companheiro um porto seguro pra viver protegida na rua, mas geralmente esses caras são alcoólatras, drogados, eles fazem mal a elas também”, diz a moradora de rua Verônica Alves.
“Eles acham que a mulher foi feita pro homem e ela é obrigada a fazer o que ele quer”, acredita Suely*.
Segundo os dados do censo, as mulheres que moram nas ruas de São Paulo ressaltam mais a necessidade de encontrar uma moradia fixa como motivação para sair dessa condição, em comparação com os homens.
Dentre as entrevistadas, 44% delas aponta a moradia fixa como condição para sair da rua. Entre os homens o desejo de moradia é mencionado por 31%, mesmo percentual dos que indicam a necessidade de emprego fixo.
A falta de moradia trouxe de volta à rua a idosa Yole Baldin, de 73 anos. Ela vive há dois meses em um abrigo da Prefeitura de SP.
“Eu estava morando em um quartinho, numa pensão, mas o cara pediu o cômodo de volta porque eu não tinha dinheiro pra pagar o que ele queria”, conta. Sua filha, Silvia Mary Leme, de 44 anos, viveu 20 anos na rua.
“Pra gente é sempre mais complicado. A mulher tem que puxar carrinho, a mulher tem que cuidar das crianças. É vivendo e aprendendo e aí você aprende o que não presta. E no fim a culpa é sempre da mulher”, diz Silvia.
A violência sexual é apontada pelas mulheres de rua como o maior risco de quem não tem domicílio fixo. “O maior chamariz é a violência sexual, é o que elas mais temem”, confirma o Padre Júlio Lancellotti.
O grupo mais vulnerável a esse tipo de agressão é o das transexuais mulheres: trata-se da identidade de gênero mais frequente entre as notificações de violência motivada pela situação de rua da vítima, segundo dados do Ministério da Saúde.
É o caso de Verônica, mulher trans que vive em um abrigo em São Paulo. Ela relata já ter sido vítima de estupro quando dormia na calçada.
“O cara estava com uma faca, ele me ameaçou, estava escuro. Eu não tinha o que fazer”, conta. “Eu estava tentando dormir em um lugar na rua onde eu pudesse ficar segura, onde não viesse um skinhead ou uma pessoa mal-intencionada me fazer mal, mas não adiantou muito.”
A história de Suely*, de 59 anos, não é diferente. Ela também foi ameaçada de estupro por um outro morador de rua, mas conseguiu escapar.
“Ele queria que eu entrasse dentro da barraca dele. Ele falava que toda mulher é obrigada a entrar quando ele quer. Dizia que mulher foi feita pro homem”, lembra.
Suely* conta que viveu 10 anos na mesma calçada em um bairro na região central de São Paulo até ser obrigada a sair de lá por conta das ameaças do agressor.
“Você não vai entrar [na barraca]? Se eu quiser você vai entrar, sim. Essa barra de ferro aqui, eu soco essa barra de ferro na sua boca e arrebento você”, dizia o homem, segundo Suely*.
“Nessa hora um conhecido meu estava perto e não fez nada. Ficou olhando. Ele me conhece há mais de 10 anos e mesmo assim ele não fez nada”, diz.
Verônica acredita que a falta de reação dos homens diante de casos de violência na rua é comum. “Nessas situações os outros homens nunca fazem nada. Eles se juntam, porque nessa hora eles são muito unidos. Às vezes eles olham, sentam e ficam observando”, diz.
Além dos casos de violência sexual as mulheres relataram ainda agressões que ocorreram dentro das dependências de assistência social da Prefeitura de São Paulo.
“Os homens parece que têm mais prioridade que as mulheres, na rua. Então sempre que tem uma atividade nos serviços da prefeitura, nos abrigos, os homens falam e não querem deixar a gente falar. Eles ficam com agressividade pra cima da gente e os funcionários nunca fazem nada”, relata Suely*.
O atendimento é alvo de críticas também de Verônica, que sofre dificuldades para se encaixar nos abrigos por ser trans. Segundo ela, mesmo nas moradias que têm espaços exclusivos para mulheres transexuais, há casos de violência.
“No abrigo da Zaki Narchi, que tem um espaço para nós, só tinha eu nessa área uma noite. E aí eles colocaram um horário pro meu banho e colocaram um monitor na porta, para não entrar ninguém. Mas um cara que queria ficar comigo foi no banheiro, passou pela porta e tentou me agarrar dentro do banheiro”, lembra.
“Eu chamei o monitor pelo menos três vezes e ele não fez nada. Não sei se ele fingiu que não ouviu. Mas aí o cara entrou e tentou me agarrar e eu me defendi. Briguei com ele lá dentro mesmo. Depois disso, fui desligada do abrigo, como se fosse minha culpa. Fui buscar minhas coisas e eles já tinham jogado tudo embora. Meus papeis, meus documentos, meu histórico escolar. Tudo no lixo.”
Soraia*, de 29 anos, diz que sempre conviveu com o assédio dos homens dentro dos abrigos, mas a situação piorou depois que se converteu à religião muçulmana.
“Eu gosto de usar minhas roupas assim, eu gosto do véu. Mas no abrigo as pessoas me olham estranho. Já me chamaram de puta, já me ameaçaram. Eles dão risada de mim, falam que eu faço isso porque quero virar santa”, conta.
“Muitos homens de rua não respeitam as mulheres. E eu acho que eles deviam respeitar todas, não importa a roupa. Uma legging, uma calça, uma saia, isso vai do gosto.”
Não existem dados oficiais sobre a população em situação de rua no país e, por isso, não há estatísticas de quantas mulheres estavam nessa condição no período em que foram registradas as notificações de violência do Ministério da Saúde. No entanto, censos realizados em grandes centros mostram que as mulheres são minoria na população de rua: entre 15% e 20% do total.
Em São Paulo, a população em situação de rua era de 15.903 pessoas em 2015, de acordo com o último censo, feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) com a Prefeitura de São Paulo. Desse montante, 82% eram homens e apenas 15% mulheres.
No Rio de Janeiro, um estudo feito pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) em 2016 verificou que os homens são 81% da população em situação de rua na cidade e as mulheres são 19%.
Em Belo Horizonte, a mesma tendência se repete: um censo de 2014 mostra que as mulheres correspondem a 13,2% da população de rua enquanto os homens eram 86,8%, segundo dados da prefeitura.
Apesar de serem minoria nas ruas, as mulheres tiveram mais registros de violência que os homens, segundo o Ministério da Saúde. Em 92% dos casos a violência indicada na notificação do SUS foi física e os principais prováveis autores da agressão foram pessoas desconhecidas (37% dos casos), seguidos por amigos e conhecidos (33%), familiares (6%) e parceiros (5%). Em 19% dos casos notificados a agressão ocorreu mais de uma vez.
O relatório do Ministério da Saúde também chama atenção para a alta frequência de lesões autoprovocadas neste grupo: aproximadamente 7% das notificações se enquadram nessa categoria. A violência autoprovocada inclui autoagressões, como mutilações, e tentativas de suicídio.
Faltam estudos sobre a situação das mulheres moradoras de rua no Brasil, segundo especialistas em assistência social. Para eles, a falta de pesquisas sobre o tema faz com que seja mais difícil determinar porque a violência atinge as mulheres em situação de rua de forma mais severa.
“Uma das hipóteses mais relevantes que levantamos é a maior procura pelo serviço de saúde por parte das mulheres, algo que é histórica e culturalmente construído. Nós vemos isso na sociedade como um todo”, explica Silvânia Andrade, técnica do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (DAPES) do Ministério da Saúde.
Segundo o padre Júlio Lancellotti, as mulheres de rua também carregam maior responsabilidade nos núcleos familiares e comunitários e, por isso, são consideradas alvos mais fáceis da violência.
“São muitos os agressores: tem os clientes da prostituição, tem os companheiros, tem os ex-companheiros, tem os policiais, tem os outros moradores de rua”, diz. “Por conta dessa grande quantidade de riscos, elas acabam dormindo mais em abrigos e menos nas calçadas.”
O machismo também é apontado como um dos principais fatores que ocasiona a discrepância entre homens e mulheres de rua nas notificações de violência do SUS.
Lancelloti afirma que já ouviu reclamações machistas durante atividades com moradores de rua em São Paulo.
“Um jovem da rua falou comigo e disse ‘Eu até respeito essa mulher, mas você viu o jeito que ela estava vestida, padre?’ Ele estava recriminando a forma como ela estava vestida, estava reproduzindo aquilo que a gente já vê na sociedade fora das ruas também”, conta Lancellotti.
Para a pesquisadora do Ministério da Saúde, resolver a disparidade nas notificações de violência de homens e mulheres de rua só será possível com investimento em estratégias específicas para o público feminino.
“O que pode ser feito é entender os mecanismos que levam as mulheres a viver em situação de rua e oferecer alternativas, incluindo moradia para que essas mulheres reduzam a sua vulnerabilidade”, afirma Andrade.
“Precisamos pensar em estratégias de acolhimento às mulheres em situação de rua que sofrem violência de modo a interromper este ciclo, e também investir em preparo dos agentes policiais para lidar com as mulheres vítimas, indo além de abordagens estigmatizadas e normalizantes da violência nas ruas.”
G1.