Ocupações de imóveis se multiplicam na Espanha
Às voltas com uma crise de moradia, a Espanha viu se multiplicarem as ocupações ilegais. Elas proliferam num cenário de elevação do preço dos imóveis, da ordem de 18% para comprar e de 52% para alugar desde 2013 — com índices ainda mais elevados em cidades como Madri ou Barcelona. O fenômeno simboliza o problema da moradia, uma das grandes questões a serem enfrentadas pelo provável futuro governo de coalizão entre Partido Socialista (PSOE) e Unidas Podemos. As ocupações misturam muita ideologia com algumas doses de malandragem e uma legislação kafkiana.
Muitos dos moradores das mais de cem mil propriedades espanholas ocupadas irregularmente, nas contas da organização econômica catalã Institut Cerdà, são pessoas pobres e sem-teto. Em parte pequena dos casos, há atuação de grupos antissistema, que pregam a invasão como forma de pressionar por preços mais baixos. Mas há também um número crescente de máfias que arrombam casas e apartamentos cujos donos estão ausentes, trocam as fechaduras e “vendem” as chaves no mercado negro a quem busca um lugar para ficar.
As coisas chegaram a um ponto em que a polícia recomendou à população redobrar os cuidados com a segurança de seus imóveis, em caso de viagem nas festas de fim de ano. O medo de invasão também faz prosperar o negócio de segurança, e em Barcelona uma empresa chamada Fuera Okupas, formada por lutadores de artes marciais, oferece seus serviços para intimidar invasores e conseguir que saiam extrajudicialmente.
A polícia pouco pode ajudar quem teve a casa invadida. É que, para proteger locatários em dificuldades financeiras, a atual lei de inquilinato proíbe a expulsão expressa de todo aquele que ocupe um imóvel há mais de 48 horas. Quando a invasão se dá num imóvel de uma pessoa física, esta deve agir rápido, portanto. Findo o exíguo prazo, a lei não permite a retomada à força nem, sequer, a suspensão de serviços como água e luz. Pela via judicial, a retomada pode levar de cinco a nove meses, mostram estatísticas oficiais.
A grande maioria das ocupações, segundo o Institut Cerdà, se dá em imóveis pertencentes a bancos, grandes empresas e fundos de investimento abutres, como o americano Blackstone. Este, sozinho, tem mais de 30 mil casas e apartamentos na Espanha. A sanha desses fundos, que investiram nos últimos anos mais de US$ 30 bilhões para adquirir propriedades no país, atende à busca de altos lucros num mercado aquecido.
Quem acaba pondo algum freio a essa farra imobiliária é, muitas vezes, o Judiciário. Na semana passada, o Supremo Tribunal anulou a venda, pela administração regional madrilenha do Partido Popular (PP, direita), de três mil apartamentos públicos sociais (destinados a pessoas pobres) a um fundo de investimento ligado ao Goldman Sachs. Segundo a sentença, a transação geraria especulação e contribuiria com o aumento abusivo dos preços.
— Parte da população não se recuperou da crise (de 2008). Isso, conjuntamente com a tendência de alta dos preços de aluguel, impede que muita gente possa pagar os valores de mercado. Evidentemente, uma melhora do emprego e dos salários ajudaria a reduzir o problema — disse Miguel Hernández, líder do estudo do Institut Cerdà.
Quando há um componente ideológico por trás da ocupação, o próprio termo muda. Movimentos de sem-teto e grupos antissistema se referem às invasões como okupações, com k. Inspirados nos squats ingleses dos anos 1970 e nos Hausbesetzungen berlinenses pós-reunificação da Alemanha, pregam a tomada ativa de imóveis vazios.
Resistência à expulsão
No passado, tiveram o apoio mais ou menos explícito de líderes do Unidas Podemos, como o próprio presidente do partido, Pablo Iglesias, e a prefeita de Barcelona, Ada Colau, oriunda da Plataforma Antidespejos, um grupo que combate remoções de inquilinos em situação de vulnerabilidade econômica e social.
Resta saber como as teses do Podemos — que advoga pelo estabelecimento de um teto legal para os preços dos aluguéis — encaixarão com as do PSOE do premier interino Pedro Sánchez, mais liberal.
Qualquer que seja a via escolhida, eles deverão ter a oposição de grupos à direita, como o PP, que defende uma política de tolerância zero com as ocupações. Recentemente, o prefeito José Luis Martínez-Almeida promoveu a expulsão da conhecida ocupação La Ingobernable, a poucos passos do Museu do Prado. Em poucas horas, na noite de 13 de novembro, centenas de jovens que haviam transformado um antigo casarão municipal abandonado num centro social e moradia foram expulsos.
No bairro de Lavapiés, outra ocupação resiste à expulsão. Ao se tratar de um espaço privado cujo proprietário a prefeitura alega desconhecer, La Quimera vai sobrevivendo e abriga principalmente imigrantes pobres chegados da África.
Desde março ali, o enfermeiro senegalês Babacar Niang, de 34 anos, contou buscar “uma moradia normal, regularizada, como a de todos”. Para isso, ele espera que a Espanha agilize a tramitação do seu pedido de asilo, o que lhe permitirá trabalhar.
Com um governo há meses provisório, ainda não empossado oficialmente e sem poder pôr suas políticas em prática, a situação dele permanece em suspenso. Assim como as de outros 102 mil solicitantes de asilo com processos acumulados, segundo o Ministério do Interior, e as das quase 40 mil pessoas sem-teto na Espanha, nas contas do governo.