
A tragédia de Brumadinho, um ano depois
Foto: Reprodução
Eram 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019 quando a barragem B1, da Vale, rompeu em Brumadinho, lançando sobre a própria empresa e comunidades vizinhas um tsunami de 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro. Um ano depois, a cidade ainda vive o trauma do desastre. Todo mundo conhece alguma das 270 pessoas que morreram e todos foram afetados pela cidade dividida ao meio, pelo som constante dos helicópteros em busca pelas vítimas, pela própria tristeza e de seus conhecidos. Muitos foram embora. Quem ficou sofre com depressão, ansiedade, insônia e já não sente mais um senso de pertencimento por não reconhecer o local. A paisagem mudou, os vizinhos se foram. E ainda há 11 vítimas desaparecidas sob a lama ou não foram identificadas no IML.
A menina Juliana, de 12 anos, desenvolveu pavor de chuva, se assusta quando há muito barulho e vomita compulsivamente se fica nervosa. Letícia, de 7 anos, se tornou uma menina agressiva e fica tensa toda vez que a avó e o pai saem para trabalhar com medo de que eles estejam “indo para a lama”. Rafael, de 12 anos, escreve cartas sobre como está triste, com saudades do tio, e passa por tratamento psiquiátrico e psicológico depois que começou a se mutilar, cortando os próprios braços.
As crianças (os nomes são fictícios) refletem, talvez de modo mais expressivo, um quadro que afeta a população de Brumadinho como um todo. Um ano após o rompimento da barragem de rejeitos de minério da Vale que deixou 272 mortos (considerando dois bebês ainda na barriga das mães), a cidade está adoecida. E mal se reconhece.
“Só de estar aqui a gente já relembra a tragédia. A sede da associação de moradores do Córrego do Feijão foi usada para guardar os corpos até eles serem encaminhados para o IML. O salão comunitário, onde fazíamos eventos e festas da comunidade, passou a ser o PA da Vale – o ponto de atendimento e de doações. A escola foi dormitório dos bombeiros, a igreja evangélica também, a igreja católica foi usada como base de operação, o campo foi usado pelos helicópteros como heliporto onde os sacos com corpos eram depositados, a quadra foi usada como hospital veterinário, tudo isso por mais de três meses. Então, tudo no lugar vai relembrar o dia da tragédia”, comenta Jeferson Custódio Santos Vieira, de 21 anos, presidente da Associação de Moradores do Córrego do Feijão.
O estudante de Direito perdeu na tragédia uma tia e a avó que lhe criou como mãe. Diomar Custódio dos Santos Silva, que tinha 57 anos, era cozinheira da pousada Nova Estância, arrastada pelo tsunami de rejeitos. A tragédia, que também levou uma das filhas de Diomar, Jussara Ferreira dos Passos Silva, de 35 anos, camareira na pousada, matou no mesmo local 17 pessoas. Entre elas, os donos da Nova Estância, Cleosane e Márcio Mascarenhas, o filho deles, o Marcinho, e uma família de cinco pessoas que estava hospedada lá, entre elas uma grávida de cinco meses (leia mais abaixo).
Jeferson conta que no dia a avó saiu de casa um pouco atrasada. “Ela me disse: ‘você arruma a casa para mim, olha os meninos (irmãos dele) e fala com a mãe (bisavó) que eu vou para Brumadinho. Provavelmente eu vou demorar a voltar para casa’. Mal sabia ela que demoraria mais de 14 dias para voltar para casa.”
Esse foi o tempo que levou para identificarem o corpo de Diomar, encontrado a cerca de 10 km de distância de onde estava. Assim como ocorreu com as famílias das outras vítimas, houve pouco tempo para despedidas. “A gente não pôde fazer um velório, não pôde respeitar nossas tradições fúnebres”, afirma.
“Minha vó tinha uma roupa escolhida que ela queria usar quando morresse. É uma tradição da minha família. Minha vó tinha essa roupa, minha bisavó tem, minha tataravó tinha, todas as gerações da minha família sempre têm uma roupa com a qual elas querem ser enterradas, e não pudemos vesti-la assim”, lamenta.
A comunidade do Córrego do Feijão foi a mais afetada pela tragédia. Ali viviam ou tinham família 35 vítimas. Era onde ficava a mina e a barragem da Vale que estourou. Foi o ponto onde, logo depois do desastre, se concentraram todos os esforços de busca e atendimento. Mas passado o momento emergencial, as operações se moveram para outros locais da cidade e o bairro está esvaziado.
Jeferson calculou que pelo menos 49 famílias foram embora dali para moradias temporárias fornecidas pela Vale, mas mais gente já deixou o lugar. Muitos venderam suas casas, o comércio que existia antes fechou. “São vários os motivos: casas interditadas por danos causados pelo rompimento da barragem, problemas psicológicos, problemas de saúde física, perda de parentes. Aqueles com problemas psicológicos se mudaram para ficar perto do atendimento e fora dessa área, que é uma área de muito estresse”, diz.
“Mas nos primeiros meses era pior. Eu não posso ouvir barulho de helicóptero que eu fico estressado. Até falei isso com a minha psicóloga, ela disse que é um estresse pós-traumático. (Se escuto) barulho de helicóptero no lugar em que eu estiver, mesmo se eu estiver em Belo Horizonte, eu já fico meio assim”, conta com o olhar distante, entristecido.
Durante os cinco dias em que estivemos em Brumadinho em meados do mês, vimos esse olhar diversas vezes. O que Jeferson relata é algo que está sendo sentido, em maior ou menor grau, por toda a cidade. Leia também o Diário de Brumadinho, em que trazemos algumas impressões pessoais sobre os dias em que passamos lá.