Assassinato de Suleimani causará mais impacto que o de Bin Laden

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Talvez ele acreditasse em seu próprio mito, na aura de invencibilidade que se esforçou tanto para criar. Na manhã de sexta-feira, o general Qassim Suleimani, mais famoso e temido comandante do Irã, desceu de um avião no aeroporto de Bagdá. Ele entrou em um comboio com o líder de uma milícia aliada – o fato de os dois viajarem juntos configura uma falha de segurança e sugere que o general se sentia seguro no Iraque. Minutos depois, ele estava morto: seu veículo fora explodido por um drone americano.

Poucos acreditaram na notícia. Em poucas horas, porém, os dois lados confirmaram os rumores. Foi uma escalada vertiginosa, pondo fim a uma semana vertiginosa. Em 27 de dezembro, dezenas de foguetes atingiram uma base militar iraquiana perto de Kirkuk, matando um contratado americano. Os EUA reagiram bombardeando cinco bases das Brigadas Hezbollah, milícia xiita apoiada pelo Irã. Pelo menos 25 de seus homens foram mortos. O grupo logo tentou invadir a embaixada americana em Bagdá.

Depois, veio o ataque que matou Suleimani e outras oito pessoas, entre elas Abu Mahdi al-Muhandis, fundador das Brigadas Hezbollah e chefe de um conjunto de milícias pró-iranianas. O longo conflito entre EUA e Irã vem sendo travado por meio de terceiros, espiões e sanções. A morte do general corresponde a um ato de guerra – um raro ataque explícito, com consequências profundas para a região.

O general Suleimani liderava a Força Quds, braço da Guarda Revolucionária que opera fora do Irã. Ele era o principal interlocutor do Irã com o Hezbollah libanês. Em 2006, durante a guerra contra Israel, o general estava no Líbano para supervisionar a campanha. Tempos depois, ofereceu apoio a Bashar Assad, o acuado ditador sírio, e aos houthis, milícia iemenita que trava uma guerra brutal contra uma coalizão liderada pela Arábia Saudita.

Seus apoiadores o viam como o rosto da chamada “resistência” contra EUA e Israel. Já seus detratores o viam como um vice-rei, um emblema da profunda e destrutiva influência do Irã na região. Na Praça Tahrir, de Bagdá, onde os iraquianos há meses protestam contra a intromissão do Irã em seu país (entre outras coisas), a notícia da morte do general foi recebida com celebração.

Os americanos o conheciam como o homem que atormentou suas tropas durante a ocupação do Iraque. O general Suleimani treinou milícias xiitas e lhes forneceu minas de estrada capazes de perfurar a blindagem dos veículos americanos. Essas bombas mataram centenas de soldados (uma em cada seis fatalidades americanas no Iraque seria atribuída ao Irã, diz o Pentágono). No entanto, George W. Bush não permitiu ataques contra Suleimani e oficiais detidos no Iraque foram libertados. Israel teve oportunidades de matar o general, mas as dispensou após pressão americana. Trump, como é de seu feitio, rompeu com esse longo precedente.

Muitos analistas temem que Trump esteja começando uma guerra. Mas o Irã não buscará um confronto aberto, no qual certamente perderia: suas forças militares antiquadas não são páreo para os americanos.

Até agora, Trump hesitou em responder (ao mesmo tempo, muitas vezes, se ofereceu para se reunir com os líderes do Irã). Ele ordenou ataques aéreos depois que o Irã derrubou um drone americano, em junho, mas chamou os aviões de volta quando decidiu que a resposta seria desproporcional. Em setembro, um ataque de míssil a dois campos de petróleo na Arábia Saudita, que os EUA atribuíram ao Irã, ficou sem resposta. Com sua maneira tipicamente caótica de agir, o presidente agora passou da inação para uma grande escalada.

Isso aumenta a chance de um ciclo descontrolado de retaliações. O regime de Teerã se preocupa com sua preservação. Mas, nos últimos tempos, também pareceu confiante, até mesmo arrogante. O ataque à companhia Saudi Aramco, um golpe sem precedentes no suprimento mundial de petróleo, abriu um período de meses em que o Irã acossou petroleiros e navios de guerra no Golfo Pérsico. Se Teerã reagir com força, é impossível prever o que Trump fará.

No curto prazo, pode ser que o regime iraniano espere um pouco e use o assassinato do general para estimular o fervor nacionalista. Suleimani era uma figura popular em um regime com pouco apoio da população. Apenas Khamenei aparecia em mais cartazes que ele nas ruas de Teerã. Mas o sentimento de admiração não era universal: o general fazia parte de um aparato de segurança que esmaga cruelmente os dissidentes. Ainda assim, um funeral oficial e o luto público serão uma distração diante da economia em ruínas, situação que provocou uma semana de protestos em todo o país em novembro.

Os EUA terão de repensar sua posição na região. Talvez seja impossível manter as tropas americanas no Iraque, onde elas treinam o Exército iraquiano e controlam os jihadistas do Estado Islâmico. O governo de Bagdá pode ordenar a saída dos americanos, um velho objetivo dos parlamentares pró-iranianos. Mesmo se isso não acontecer, talvez o Pentágono decida que é muito difícil proteger as tropas americanas em terreno hostil.

A retirada do Iraque também pode acabar com a presença dos EUA na Síria, cuja logística depende do Iraque. Com a saída das tropas americanas, o EI teria mais espaço para se reagrupar. Diplomatas e espiões americanos enfrentam ameaças de sequestro e assassinato. As empresas podem ter preocupações semelhantes com os funcionários que trabalham nos campos de petróleo iraquianos e em outros lugares.

O general Suleimani era um comandante singular, tanto em competência quanto em posição. Ele parecia estar em toda parte, surgia em campos de batalha de todo o Oriente Médio. Alguns o viam como o futuro líder do Irã – o verdadeiro poder por trás dos clérigos. Sua morte é um golpe na ambiciosa política regional que ele supervisionava, muito mais significativa que os ataques que mataram Osama bin Laden, da Al-Qaeda, ou Abu Bakr al-Baghdadi, do EI. Quando morreram, esses homens eram figuras decorativas no comando de organizações encolhidas. Suleimani foi morto em ascensão, no momento em que o Irã ainda exerce grande poder na região.

Não está claro se o ataque fará os EUA avançarem rumo a seu objetivo de criar um Irã menos beligerante e mais controlado. Embora hoje pareçam pertencer a um passado distante, as tensões atuais começaram em 2018, quando Trump se retirou do acordo nuclear com o Irã. Qualquer esperança de renegociá-lo provavelmente morreu com Suleimani.

Estadão.