Atriz censurada por Jesus trans defende Porta dos Fundos
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Renata Carvalho conhece de perto o fanatismo religioso que motivou o atentado contra a produtora Porta dos Fundos. A atriz foi alvo de diversos ataques enquanto percorria o Brasil com o seu espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, no qual ela interpreta um Cristo transexual que vive nos dias de hoje. Desde a estreia, em 2017, até a última apresentação em terras nacionais, no início do ano passado, a peça foi censurada cinco vezes. Renata recebeu ameaças de espancamento e morte, chegou a atuar trajada com um colete a prova de balas e sobreviveu a uma bomba atirada no palco onde se apresentava, em Garanhuns, Pernambuco.
— Conheço o ódio que os cidadãos de bem no Brasil costumam despejar. Achei que fosse morrer aos 35 anos, em cima do palco — conta a artista, que tinha certeza de que a onda de violência não era direcionada apenas a ela. — As pessoas acharam que toda aquela agressividade fosse parar na gente, como se a reação só existisse porque eu era uma trans interpretando Jesus. Mas hoje estamos vivendo uma ditadura eclesiástica armamentista. Eles acham que são donos de Cristo. Não protestam contra a miséria ou as queimadas na Amazônia, mas basta um Jesus gay para gerar um incêndio.
Escrito pela britânica Jo Clifford, “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” imagina um Cristo vivendo no tempo presente, na pele de uma mulher trans. Histórias bíblicas são contadas de forma a propor uma reflexão sobre a intolerância. A atriz, porém, se tornou alvo real do preconceito que a peça questiona. O espetáculo foi censurado em cidades como Salvador, Recife e Rio. No Festival de Inverno de Garanhuns de 2018, a prefeitura vetou sua apresentação, mas a produção fez uma vaquinha virtual e conseguiu encenar a montagem paralelamente ao evento, numa tenda alugada. Ao fim da primeira sessão, lotada, fanáticos atiraram bombas dentro do espaço.
— O Porta dos Fundos está sentindo um pouco da violência que sofremos. Envio toda a minha solidariedade, é um absurdo o que fizeram contra eles — diz Renata.
Porém, ao analisar as diferentes temperaturas da reação pública diante dos ataques que ela sofreu e do atentado à sede do grupo de humoristas, Renata diz que existe, no Brasil, uma espécie de “militância seletiva”. De certa forma, a atriz de 38 anos lamenta que a perseguição contra sua peça não tenha gerado a mesma comoção nas redes que se viu depois do ataque terrorista na produtora em Botafogo, na Zona Sul do Rio. Para a ativista, fundadora do Coletivo T, formado por artistas trans, fica evidente que, mesmo entre supostos apoiadores da diversidade de gênero, muita gente também acha que uma travesti intrepretando Jesus é afronta demais.
— A nossa construção social não considera válido o corpo trans. É tratado como um corpo demonizado, um corpo doente. Somos atacadas diária e publicamente e ninguém fala nada. Até alguns artistas achavam que era demais uma travesti fazendo Jesus. Tudo por causa dessa imagem demonizada do corpo trans. A violência que sofremos não gerou hashtag, não chegou ao STF em um dia — questiona Renata. — Condeno a violência contra o Porta dos Fundos e acho ótimo que as pessoas estejam indignadas. Mas também acho que muitos estão defendendo o grupo porque são homens brancos famosos e cisgêneros.
Durante meses, Renata achava que seria morta no palco, enquanto encenava o espetáculo. Sentiu-se tão oprimida que decidiu parar. Este ano, ela levou a peça a Glasgow, na Escócia. Mas não pretende mais montar a produção no Brasil.
— Estamos em um mundo de pessoas armadas. Eu estava entrando em pânico. Consegui superar com ajuda da análise, mas decidi não encenar mais o espetáculo no Brasil. Por questões de saúde mental e por medo de morrer mesmo.