Ceará não combate tortura nas prisões
Foto: Relatório MNPCT
Entidades da sociedade civil apontam que, cerca de dez meses após as primeiras denúncias sobre casos de tortura em penitenciárias cearenses, o governo estadual ainda não atendeu recomendações expedidas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O estado está desde janeiro de 2019 sob uma política de endurecimento penal marcada, entre outras coisas, pela existência de uma rotina de violência institucional no sistema carcerário.
O problema tem sido denunciado por diferentes órgãos, entidades e atores políticos, como a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Ceará (OAB-CE), parlamentares de oposição, especialistas e movimentos populares. Eles apontam a imposição constante de práticas de isolamento e incomunicabilidade aos presos, além de castigos coletivos e torturas generalizadas.
As primeiras manifestações vieram à tona em março de 2019, após o Conselho Estadual de Direitos Humanos e o Comitê Especial de Prevenção e Combate à Tortura enviarem denúncias ao MNPCT. O órgão fez diligências no estado e depois, em abril, publicou um relatório sobre o tema, emitindo também um conjunto de recomendações ao estado.
Entre os pedidos encaminhados diretamente para o governador, Camilo Santana (PT), está a criação de um grupo de trabalho interinstitucional para monitorar as recomendações do MNPCT e o seu cumprimento. Também foi solicitada pelos peritos a apresentação de um projeto de lei (PL) que reestruture a Ouvidoria de Direitos Humanos do Estado e estabeleça um canal de denúncias acessível a detentos, familiares e funcionários do sistema penitenciário.
O MNPCT recomendou ainda ao mandatário a apresentação de outros dois PLs, sendo um para a criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), com garantias para a autonomia e a independência do trabalho dos peritos, e outro para a criação de cargos de profissionais de várias áreas para atuar no sistema carcerário. Entre eles, estão assistentes sociais, psicólogos, médicos, enfermeiros, pedagogos e terapeutas ocupacionais.
“É claro e plácido que não houve cumprimento das recomendações no que tange à criação do Mecanismo e no fortalecimento do sistema estadual de prevenção e combate à tortura. Agora, existem outras informações que eles estão nos devendo”, sublinha Ribamar Araújo, do MNPCT, destacando a ausência de um fluxo de informações com o governo.
O problema é apontado também por outros atores que acompanham o tema. O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, Hélder Salomão (PT-ES), ressalta que, durante diligência do colegiado ao Ceará no mês passado para tratar do assunto, o governador não recebeu a equipe do Legislativo. Na ocasião, Santana pediu que um representante conversasse com a CDHM em seu lugar.
“Nós ouvimos muito das entidades que falta diálogo do governo com a sociedade sobre esse tema em especial, e o fato de o governador não ter recebido a comissão foi um péssimo sinal”, critica o deputado, para quem “não é possível seguir sem um efetivo canal para tratar do assunto”.
“Se o governador não recebe nem os deputados federais, imagine o que as famílias e os movimentos sociais não vivenciam aqui. Não existe escuta e não existe plano pra modificar isso. O plano do governo do estado hoje é o de torturar as pessoas”, acrescenta a militante Sarah Menezes, do Instituto da Mulher Negra (Inegra), uma das entidades que monitoram o caso.
Nas denúncias relacionadas ao problema, os peritos do MNPCT apontam a existência de um padrão de lesões corporais na cabeça, nas mãos e nos dedos dos presos, sendo este último caso caracterizado pela quebra do metacarpo, parte do esqueleto situada próxima aos dedos. O objetivo seria inviabilizar a articulação das mãos dos detentos. Os peritos destacam que tiveram acesso a exames e laudos clínicos que atestam os ferimentos.
Também são comuns relatos de uso indiscriminado de spray de pimenta quando os presos não conseguem se manter imóveis e mudos diante dos chamados “procedimentos” – emissão de comando para que os detentos fiquem “despidos ou encaixados uns aos outros com as mãos na cabeça”, conforme aponta relatório do MNPCT.
“Pela superlotação das celas e pela posição estressante a que são submetidos, se tornam inevitáveis murmúrios e queixas entre os presos. Deste modo, fica evidente que as longas sessões de ‘procedimentos’ terminam sempre com uso abusivo da força”, afirma o documento.
No caso das mulheres, há denúncias de violência obstétrica, agressões com socos, chutes e mata-leões [tipo de golpe de estrangulamento] e ainda uso de spray de pimenta na vagina das presidiárias, com o objetivo de provocar dor e sofrimento.
“Nenhuma ação no nível da intervenção tática pode ser feita sem que haja um protocolo de uso da força. Que armas estão sendo usadas? De onde vem e como é controlado esse uso indiscriminado de spray de pimenta? Nada disso tem sido respondido [pelo governo]. Há um vácuo nesse tipo de resposta”, critica o perito Ribamar Araújo.
O relatório acrescenta que muitos dos castigos coletivos seriam aplicados “com os presos desnudos durante o dia, sob o sol escaldante do Ceará”. Ao cenário de terror relatado por detentos aos peritos se somam ainda constantes humilhações verbais e ameaças, presenciadas até mesmo pela Pastoral Carcerária do Ceará durante visitas aos locais.
“A gente vê, escuta, percebe, acompanha toda a dor e o sofrimento das pessoas presas e de suas famílias. A tortura se tornou regra, um fato normal. Parece que não surpreende mais ninguém.Os procedimentos cotidianos são de uma humilhação muito grande”, afirma Irmã Gabriela Pinna, da entidade.
Em novembro do ano passado, a OAB e 27 organizações da sociedade civil enviaram um relatório à Organização das Nações Unidas para denunciar o caso. O documento assinala a existência de “tortura estrutural”, procedimentos disciplinares ilegais, criminalização de familiares e violações a mulheres encarceradas. Também é destaque a questão racial: 94% das mulheres presas são negras e estão na única unidade prisional feminina do estado, em que foi verificada superlotação de 393% no final de 2019.
Surgido no cerne do discurso de campanha do governador Camilo Santana em 2018, quando o combate à violência ganhou ainda mais proeminência no debate eleitoral, o endurecimento penal que hoje caracteriza o Ceará teve como marco a chegada do atual titular da Secretaria Administração Penitenciária (Seap), Mauro Albuquerque, em janeiro de 2019. Ele é o primeiro a ocupar a pasta, criada no mesmo período como destaque da cartilha de prioridades da segunda gestão de Santana no cargo.
Policial civil do Distrito Federal, o agente sedimentou a carreira atuando no controle de presídios e se projetou nacionalmente nos últimos anos, após uma missão no Rio Grande do Norte em 2017, durante uma rebelião local. O trabalho lhe rendeu, na época, um conjunto de críticas por conta de sua tendência linha-dura.
Um relatório produzido em 2018 por órgãos federais apontou que o Ceará figurava entre os três estados do país onde a abordagem dos agentes penitenciários entre os anos de 2016 e 2017 chegou a ser comparada ao protocolo adotado pelo Exército dos Estados Unidos no Iraque.
Em sua passagem pela Seap do Ceará, estado onde já conduziu uma crise penitenciária em 2016, Mario Albuquerque tem hoje uma gestão marcada pela rigidez. O balanço de seu primeiro ano de atuação inclui, além das denúncias de tortura, mortes não investigadas no sistema prisional, veto a produtos de higiene dos presos, restrições a comidas levadas por familiares e ainda normas de vestimenta padronizada para as visitas, que agora enfrentam também problemas de deslocamento para visitar os detentos.
O motivo é o fechamento de 102 cadeias públicas no interior do estado desde que Albuquerque assumiu a secretaria. A medida resultou na transferência de 5 mil presos, concentrando a população carcerária na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e causando transtornos aos visitantes.
Sociedade civil e OAB apontaram ainda que as transferências se deram sem que houvesse prévia comunicação às famílias e ao sistema de Justiça.
“A gente não pode esquecer que, se existem pessoas aprisionadas pagando sua pena – e eu acho que precisa haver essa responsabilização –, as famílias tentam garantir a vida das pessoas que amam e elas não têm culpa e não precisam pagar essa pena junto com essas pessoas ”, argumenta Sarah Menezes, do Inegra.
A gestão de Albuquerque enfrentou, logo no início, uma crise relacionada ao endurecimento das medidas adotadas. Ao assumir o cargo, ele anunciou que o estado passaria a controlar o uso de celulares nas unidades e que acabaria com a divisão dos presos por facção.
As novidades acarretaram uma onda de violência nas diferentes regiões do Ceará, que registraram centenas de ataques criminosos a ônibus, viadutos e órgãos públicos no início de 2019.
Segundo a imprensa local, foram pelo menos 261 ataques em 50 municípios até o início de fevereiro. As ações foram atribuídas ao crime organizado. Em novembro, novos ataques foram registrados no estado, desta vez sendo associados às violações de direito no sistema carcerário.
Ao mesmo tempo em que a crise no sistema penitenciário se desenrola, o governo do Ceará enfrenta duras críticas ao modelo adotado para a gestão da segurança pública. Entre elas, está a divisão dos investimentos entre as áreas de saúde e educação, por exemplo, e os gastos com segurança.
Uma nota técnica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE) de 2019 apontou que, caso siga no ritmo atual, o orçamento da área de segurança vai superar os outros dois no ano de 2025.
No relatório enviado à ONU em novembro, os signatários afirmam que as medidas que vêm sendo adotadas por Mario Albuquerque e Camilo Santana tendem a gerar um “colapso” no sistema de segurança. O discurso é endossado também por parlamentares de oposição, como o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará, Renato Roseno (Psol).
“Acho que o Camilo cedeu ao populismo penal. Ele aposta no recrudescimento penal, não enfrenta as causas estruturais da violência e nem tem uma agenda de prevenção social. Desse ponto de vista, ele se aproxima, lamentavelmente, do que há de mais conservador hoje na sociedade brasileira, que é o bolsonarismo, em matéria de segurança pública”, critica.
O Brasil de Fato tentou ouvir o governo do Ceará a respeito das críticas feitas pelas fontes ouvidas nesta matéria. Sem mencionar diretamente as denúncias de tortura, a assessoria de imprensa do governo afirmou, em nota, que a gestão tem “compromisso com a aplicação do Código Penal e a Lei de Execuções Penais” e que o sistema penitenciário local “passa por mudanças, com forte atuação e presença do Estado”.
Na visão da secretaria, os procedimentos atuais teriam resultado no restabelecimento da segurança e no “aprofundamento de diversos projetos cotidianos”, como a ressocialização dos presos.
A respeito do fechamento das cadeias do interior, a secretaria afirma que isso teria garantido segurança aos presos, agentes penitenciários e às cidades de origem, cujas unidades prisionais não teriam condições estruturais. “Nenhum familiar de detento passa por humilhações, ameaças e violência de aproveitadores. Hoje o Estado garante a segurança dos familiares visitantes”, diz a nota.
Sobre as recomendações feitas pelo MNPCT, o governo afirma que a Seap “já possui uma ouvidoria atuante”, que fez 1.500 atendimentos em 2019, com índice de 96% de resolução. A pasta sustenta ainda que “mantém equipes completas de saúde e assistência social” e que realizou, por exemplo, 76 mil atendimentos médicos ano passado.
A respeito da criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e de um grupo de trabalho interinstitucional, o governo afirma que uma comissão estuda atualmente a formatação e o impacto financeiro das medidas.