Política de abstinência sexual ignora estupro de menores
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De um lado, uma ministra com ideias radicais, cada vez mais popular e com pouco dinheiro. Do outro, um ministro com muitos recursos e um trabalho discreto, passando batido pela enxurrada de polêmicas diárias do Governo Jair Bolsonaro. A campanha pela abstinência sexual que Damares Alves pretende lançar durante a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, prevista para acontecer na primeira semana de fevereiro em parceria com o Ministério da Saúde, comandado pelo médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta, vem colocando os dois ministros em lados opostos. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos dita ―ou tenta ditar― as diretrizes da ação, mas o custo de 3 milhões de reais será bancado pelo Ministério da Saúde. Em nota técnica obtida pelo jornal O Globo no último fim de semana, a pasta comandada pela pastora evangélica afirma que o início precoce da vida sexual leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”, entre outros resultados.
Já a pasta de Mandetta afirmou, em outra nota técnica, que a campanha deve reforçar a autonomia e o protagonismo do jovem sobre sua iniciação sexual, colocando à disposição os métodos contraceptivos. Ao jornal Folha de S. Paulo o ministro afirmou que a mensagem do “comportamento responsável é válida”, mas que “o problema é complexo” e “não se pode minimizar a discussão e dar ênfase só para isso”. Ele também disse que questões religiosas não devem pautar a discussão e que tem “apostado muito muito em informar as consequências, porque acredito que esse seja um ponto essencial para a conscientização”.
Fora desse embate estão os números alarmantes de estupros cometidos em meninas menores 14 anos, uma das principais causas da gravidez precoce, segundo diversos especialistas e estudos. Os dados mais recentes constam no último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A entidade mostra que nos de 2017 e 2018 foram registrados um total de 127.585 estupros, dos quais 63,8% ocorreram em menores de 14 anos ―o que se configura como estupro de vulnerável. Além disso, 81,8% dos casos aconteceram em mulheres, 75,9% foram cometidos por alguém conhecido e em de 95% deles os autores pertencem ao sexo masculino. “É de se destacar que os crimes sexuais estão entre aqueles com as menores taxas de notificação à polícia, o que indica que os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema que vitima milhares de pessoas anualmente”, afirma o texto.
A ministra Damares também vem apontando para o aumento dos casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis. Em julho do ano passado, a ONU apontou que o contágio do vírus da AIDS no Brasil cresceu 21% em oito anos, apesar das campanhas e tratamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Essa tendência já vinha sendo observada por entidades e especialistas, que apontam para o nível de desconhecimento das novas gerações, que não vivenciaram o pânico gerado pelos primeiros contágios a partir da década de 1980. Seja como for, o Governo Bolsonaro foi criticado por ter transformado o órgão responsável pelo combate à doença em uma coordenadoria dentro do Ministério da Saúde —antes, era um departamento específico. Na prática, isso significou que a política de enfrentamento ao vírus, tida como referência no combate ao HIV em todo o mundo, perdeu relevância.
Além da campanha de prevenção da gravidez, o MMFDH pretende lançar uma política pública mais ampla chamada de Plano Nacional de Prevenção ao Risco Sexual Precoce, em que também abordará o “adiamento da iniciação sexual” como método contraceptivo. Especialistas no tema afirmam que a estratégia é ineficaz. Pouco importa: a abstinência sexual é uma agenda defendida por amplos setores da Igreja Evangélica e de grupos ultraconservadores que fazem lobby junto Governo Jair Bolsonaro ―e que vêm conseguindo implementar suas ideias nos Estados Unidos de Donald Trump. Mas as ideias radicais que norteiam a nota técnica do ministério ganham, na voz de Damares, contornos razoáveis e que podem facilmente atingir mães e pais com preocupações na hora de criar filhos pré-adolescentes.
“Que dano eu vou trazer para uma criança ao dizer para ela: ‘espera mais um ano’, ‘espera um pouquinho’?. Não vamos eliminar os outros métodos preventivos. Vamos continuar falando da camisinha; vamos continuar falando da pílula; vamos continuar falando dos outros métodos”, afirmou a ministra em entrevista publicada pelo jornal Correio Braziliense no último domingo. “A gente quer mais que uma campanha; a gente quer começar a conversar sobre isso; a gente quer que isso seja uma coisa permanente, de modo que toda vez que uma professora falar de preservativo, ela também fale: ‘Olha, vamos pensar duas vezes antes de transar?’. É só uma frase! É só sentar com esse menino e conversar”, acrescentou a pastora evangélica.
Sua fala contradiz a nota técnica do MMFDH, que defende que ensinar métodos contraceptivos para jovens “normaliza o sexo adolescente”, já que nem todos tiveram iniciação sexual. Contrariando mais uma vez Damares, a nota técnica da Saúde afirmou que educação sexual não estimula relações sexuais. Serve, pelo contrário, para que o jovem conheça o próprio corpo e oferece insumos para que sua escolha seja acordo com suas expectativas.
A ministra também abordou na entrevista alguns problemas reais e apelou para o senso comum: “A gravidez precoce está crescendo de uma forma absurda. E mais do que a gravidez precoce, as doenças sexualmente transmissíveis. Sabiam que estamos em epidemia de sífilis? O Unicef apresenta o relatório da idade média de iniciação do sexo no Brasil: menina está com 13,9 anos, e menino, 12,4 anos. Imaginem comigo: o Código Penal Brasileiro fala que é estupro transar com uma criança com menos de 14 anos”.
Os números e estudos mostram uma realidade mais complexa que a divulgada por Damares. Um relatório de 2018 da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Unicef afirma que entre 1995 e 2000 a gravidez entre adolescentes de 15 a 19 anos atingiu seu ápice, de 83,6 nascimentos para cada 1.000 mulheres. Entre 2010 e 2015 essa proporção caiu para 68,4 grávidas. Por outro lado, reportagem da Folha de S. Paulo mostrou que na capital paulista os índices vêm aumentando na periferia. Seja como for, os números são altíssimos se comparados com a média mundial de 46 nascimentos para cada 1.000 adolescentes, enquanto que na América Latina e no Caribe a média é de 66,5 gestações.
De acordo com um estudo do Ministério da Saúde, 3,2 milhões de adolescentes foram mães no Brasil entre 2011 e 2016. Desse total, 95% estavam na faixa etária de 15 a 19 anos. As gestações em meninas de 10 a 14 somaram 162.853 (ou cerca de 25.000 por ano), um número significativamente menor, mas ainda em um patamar bastante elevado.
Essa realidade entre as adolescentes mais novas pode ser explicada, entre várias questões, pelo fato de que as meninas foram também as principais vítimas de estupro entre adolescentes ―a mesma tendência observada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram notificados um total de 49.489 casos de estupro contra jovens do sexo feminino, dos quais 66,3% (32.809) tinham de 10 a 14 anos, enquanto que 33,7% (16.680) tinham de 15 a 19 anos.
A partir daqui as complexidades e dificuldades de análise ficam ainda mais evidentes. As notificações de gestações decorrentes de estupro são baixas se comparados com o total de violações e de nascimentos registrados por adolescentes: segundo o estudo, 10.814 mães jovens que tiveram filho também afirmaram ter sido abusadas, sendo que 3.276 estavam na faixa de 10 a 14 anos e 7.538 tinham 15 a 19 anos. Porém, o relatório destaca que “a análise dos casos das mães adolescentes no período de 2011 a 2016 mostrou que a notificação de estupro podia ocorrer antes ou depois do registro do nascido vivo”.
Além disso, o estudo destaca que os abusos ocorridos repetidas vezes aconteceram em 45,6% dos casos de meninas de 10 a 14 anos e 25,7% das jovens de 15 a 19 anos. Entre as que ficaram grávidas em decorrência de estupro, em 72,8% (10 a 14 anos) e 44,1% (15 a 19 anos) dos casos a violação teve caráter repetitivo. Portanto, continua o estudo, “a gravidez na adolescência e as notificações de estupro podem estar associadas, evidenciada pela alta prevalência de violência de repetição, de ocorrência de estupro e outras vulnerabilidades”.
Em relatório de 2017, a Unicef aponta “entre 40% e 60% dos casos de gravidez na adolescência resultantes de violência sexual”, de acordo com outros estudos. “Mas, apesar de os indicadores quantitativos e qualitativos comprovarem a gravidade do problema, a literatura brasileira carece de mais dados aprofundados sobre essa situação. Mesmo assim, ainda que os dados demográficos não sejam claros, algumas poucas pesquisas qualitativas confirmam a gestação fruto de abuso”, afirma o texto.
A ministra Damares Alves não nega esta realidade e diz que defende a educação sexual em escolas, desde que falada “de forma certa”. Coincidindo com movimentos feministas, afirmou ao Correio que “quem for falar para a criança de 3 anos sobre educação sexual deve fazê-lo inclusive para empoderar essa criança a se proteger”. Ela inclusive aproveitou para lembrar seu histórico pessoal de violação: “Vocês conhecem a história do meu abuso, daquele momento terrível da minha vida. Se eu soubesse o que era aquilo, eu teria gritado. Eu tinha 6 anos”. Mas mais uma vez o discurso não condiz com as diretrizes do Governo: conforme publicou o jornalista Jamil Chade no último dia 28 no EL PAÍS, o Governo Bolsonaro tem vetado a menção à educação sexual em documentos da ONU e da OMS e vem sendo aplaudido por ultraconservadores e até por sauditas.
Damares apela mais uma vez ao senso comum ao argumentar que o Brasil não combateu a “erotização” que vem resultando na iniciação sexual precoce de meninas. “Vocês acham que uma menina de 12 anos, anatomicamente, tem o canal da vagina pronto para ser possuída por oito adultos? Aí você me pergunta: ‘De onde a senhora tira os oito adultos?’. Delas. Pergunte às meninas com quantos parceiros elas já se relacionaram. Gente, nós estamos diante de uma tragédia. As meninas estão ficando por uma certa pressão social”, afirmou na entrevista ao Correio.
Mais uma vez a realidade se revela mais complexa. O estudo do Ministério da Saúde também mostra que mais de 70% das mães adolescentes são negras e a maioria mora no Nordeste e no Sudeste. Também são elas as mais expostas à violência sexual. Mas o estupro não pode ser considerado a única causa do alto índice de gravidez na adolescência, conforme o próprio estudo admite: “Uma revisão sistemática da literatura mostrou forte associação entre história de violência sexual e gravidez na adolescência. Outros fatores, como início precoce da vida sexual, não morar com os pais, pobreza e negligência, também apresentaram forte associação com a ocorrência da gravidez na adolescência”, afirma o texto.
O relatório da Unicef também aponta quatro “macrofatores” causais para o alto índice de gravidez precoce: além da violência sexual, aponta para o “descompasso entre o desejo sexual e o risco de gravidez, que pode resultar na gravidez não planejada (escapulida)”; a “vontade da maternidade, que resulta na gravidez desejada”; e a “necessidade de mudança de status social, que resulta na gravidez estratégica”.
Nesse contexto cabe também destacar o elevado número de uniões estáveis e casamentos entre adolescentes, uma realidade para 23,2% das meninas com de 10 a 14 anos, e 36,8% entre aquelas de 15 a 19 anos, lembra o Ministério da Saúde. “As dificuldades para resolver os vínculos de dependência do grupo familiar podem levar os jovens a buscar uma pseudoindependência, substituindo os laços com os pais pela dependência afetiva do casal. A adolescente que vive em um meio social desprovido de recursos materiais, financeiros e emocionais satisfatórios pode ver na gravidez uma expectativa de futuro melhor, embora ela possa se tornar mais vulnerável nessa situação”, explica. A Unicef coloca o Brasil como o país com mais casamentos precoces da América Latina e o quarto de todo o mundo.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública segue na linha da entidade da ONU e lembra que as adolescentes muitas vezes “associam o casamento à possibilidade de mudança de status social, de alguma forma de emancipação e de serem mais valorizadas”. Já um estudo qualitativo feito pela ONG Plan International coloca que a gravidez na adolescência é a principal razão para que garotas brasileiras casem antes dos 18 anos.