Posicionamento do Brasil sobre Suleimani revolta diplomatas
A guinada na política externa brasileira, iniciada no início de 2019 com a posse do presidente Jair Bolsonaro, foi acentuada na última sexta-feira, com uma nota divulgada pelo Itamaraty como reação à morte do general Qassem Soleimani, comandante da Guarda Revolucionária do Irã, morto no Iraque em um ataque aéreo americano. Em linguagem diplomática, o governo Bolsonaro associou Soleimani ao terrorismo e reforçou sua estratégia de alinhamento a Washington.
Oficialmente, o Brasil só considera como terroristas os grupos al-Qaeda e Estado Islâmico, seguindo resoluções tomadas pelas Nações Unidas. Porém, a pedido dos EUA, o governo brasileiro já vinha cogitando incluir na lista o movimento xiita libanês Hezbollah — que, junto com o palestino Hamas, é considerado inimigo do Estado de Israel. A novidade é que, ao avalizar o assassinato do general iraniano, o Brasil sinaliza que a Guarda Revolucionária do país persa também entra na lista.
Intitulada “Acontecimentos no Iraque e luta contra o terrorismo”, a nota mostra, de forma inusitada, que o Brasil assumiu o lado americano no conflito entre EUA x Irã, apesar de também afirmar que o Brasil está “pronto a participar de esforços internacionais que contribuam para evitar uma escalada de conflitos neste momento”.
Segundo uma graduada fonte da área diplomática, o próximo passo do governo será defender medidas como o compartilhamento de inteligência com outros países, o enfrentamento mais assertivo da lavagem de dinheiro, a pressão sobre regimes “que albergam terroristas”, o que incluiria o do venezuelano Nicolás Maduro, e a cooperação com países africanos afetados pelo terrorismo.
As iniciativas serão propostas durante uma reunião ministerial hemisférica sobre combate ao terrorismo no dia 20 de janeiro, na Colômbia.
— Não podemos resolver o problema sozinhos, mas temos uma capacidade de ajudar muito maior do que se imagina, desde que haja vontade política, como hoje há. Os riscos do terrorismo estão aí, em função da própria existência do terrorismo. É um grande equívoco achar que não fazendo nada contra eles os terroristas vão nos deixar quietos. Isso seria deixar-se intimidar, que é exatamente o que os terroristas querem — explicou essa fonte ao GLOBO.
Esse posicionamento é alvo de críticas e motivo de preocupação de funcionários na ativa que estão servindo em países do Oriente Médio. Segundo um diplomata que não quis se identificar, existe o temor de que os postos e consulados brasileiros se tornem alvos da anunciada vingança iraniana.
— Estou estupefato com a nota do Itamaraty. Fui embaixador nos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor, Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva e nunca vi nada parecido. O Brasil sempre foi um país que favoreceu soluções pacíficas — disse Celso Amorim, chanceler dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e ministro da Defesa de Dilma Rousseff.
Para Amorim, houve uma execução sumária do general, sem que o tema fosse nem sequer discutido no Conselho de Segurança da ONU. Ele reconheceu que os EUA já adotaram medidas unilaterais antes, mas argumentou que essas ações, normalmente, eram precedidas de debates entre os atores internacionais.
— Essa bomba atingiu o coração das Nações Unidas. Sob o ponto de vista do interesse brasileiro, quanto menos o Brasil se associar a essa posição americana, melhor — afirmou Amorim.
A questão da segurança não é a única preocupação. No ano passado, o Brasil teve um superávit de US$ 2 bilhões com o Irã, grande comprador de milho, soja e carnes e um dos principais fornecedores de ureia para a fabricação de fertilizantes agrícolas. Ou seja, os iranianos são relevantes parceiros comerciais.
Na avaliação do ex-embaixador do Brasil nos EUA, Rubens Barbosa, houve uma clara mudança de posição no Itamaraty. Ele observou que o combate ao terrorismo passou a ser uma das prioridades da política externa brasileira.
— O Brasil reforçou bastante a questão do combate ao terrorismo na nota, enquanto os países europeus passaram como mensagem a necessidade de se conter a escalada da violência no Oriente Médio — disse Barbosa, de Paris, em conversa com O GLOBO por telefone.
O cientista político Guilherme Casarões, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, salientou que o repúdio ao terrorismo é princípio constitucional brasileiro. A questão é que, com a nota, o governo Bolsonaro passou duas mensagens que contradizem o entendimento tradicional da diplomacia do país: ao endossar a ação, o Brasil ignora que assassinatos dirigidos são ilegais pelo direito internacional; e, ao classificar a decisão do presidente Donald Trump como combate ao terrorismo, sugere considerar que a Guarda Revolucionária do Irã, cuja unidade de elite, as Forças Quds, era chefiada por Soleimani, é um grupo terrorista.
— Isso vai de encontro à posição brasileira de considerar como terroristas as organizações dispostas em listas do Conselho de Segurança da ONU — ressalta.
Eduardo Saldanha, advogado e professor da Escola de Direito da PUC do Paraná, lembrou que existe um acordo firmado por EUA e Iraque que permite a defesa de cidadãos americanos naquele país, na hipótese, por exemplo, de ataques à embaixada e aos consulados dos EUA. Essa seria uma explicação para que a operação ocorresse em território iraquiano, e não no Irã.
— Sob o ponto de vista do direito internacional, é preciso verificar se houve ou não violação do acordo entre EUA e Iraque, que, por sua vez, poderá requerer uma investigação. Mas, sob o ponto de vista diplomático, o Brasil demonstrou que está do lado da política externa americana e que considera como terrorista o general iraniano.