Soleimani era um “mártir vivo” no Irã
Foto: Wana News Agency/Reuters
A morte do general Qassem Soleimani em um ataque dos Estados Unidos, representou um duro golpe para os iranianos, tanto para as autoridades políticas do regime quanto para a população comum. O carismático comandante das Forças Quds era considerado herói de guerra e também a peça-chave no aparato de segurança, que impedia uma ação direta das potências estrangeiras contra o Irã. Mais do que isso: era um símbolo da resistência. Não à toa, já havia sido descrito como “mártir vivo” pelo aiatolá Ali Khamenei, líder máximo no país.
A designação de mártir carrega um simbolismo profundamente enraizado no Irã e no xiismo, vertente do islamismo praticada no país. Todos os 11 líderes xiitas, os chamados imãs, descendentes diretos do profeta Maomé, foram assassinados ao longo da história. Paira portanto nessa divisão do islamismo um sentimento de injustiça e sofrimento, que valoriza as vozes que se levantam contra a opressão dos poderosos. Tanto que, na mais notória celebração religiosa, a Ashura, os iranianos param anualmente por dias seguidos para lembrar e representar o martírio do imã Hussein, que morreu com dezenas de companheiros, enfrentando os milhares de soldados do califa Iazid na Batalha da Karbala.
Portanto, ao descrevê-lo como “mártir vivo”, Khamenei colocou Soleimani praticamente no mesmo patamar dos que caíram no campo de batalha, inclusive os históricos líderes xiitas. Trouxe um pouco de misticismo para uma figura já respeitada por seus feitos militares, por sua alegada incorruptibilidade e por sua dedicação à República Islâmica. Em outra grande manifestação de desagravo, Khamenei concedeu ao militar, em março do ano passado, a medalha da Ordem de Zolfaqar, a mais alta honraria do país, que foi entregue pela primeira vez a um oficial militar desde a revolução de 1979.
Qassem Soleimani nasceu em 1957, em Qanat-e Malek, no Sudeste do Irã, mas mudou-se ainda pequeno para Kerman, capital da província de mesmo nome. Passou parte da adolescência trabalhando na construção civil. Nesta sexta-feira, as ruas da cidade foram tomadas por uma multidão vestida de preto e segurando cartazes com a foto do general.
Após a Revolução Iraniana, Soleimani entrou para a recém-criada Guarda Revolucionária, instituição que passou a dividir com as Forças Armadas tradicionais a responsabilidade pela segurança do país e do regime. Durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), comandou a importante 41ª Divisão, que participou de operações de destaque no conflito e depois foi responsável por defender com sucesso a fronteira oriental do país.
Soleimani continuou a ascender nos rankings da Guarda Revolucionária depois da guerra e, em 1998, foi escolhido para comandar as Forças Quds. Essa unidade, ao lados dos Basijis, constituem os dois pilares da Guarda Revolucionária. Enquanto os Basijis atuam internamente, como uma milícia que garante a unidade do regime, persegue opositores e resguarda a aplicação da cultura islâmica, as Força Quds, considerada de elite, atuam predominantemente no exterior. Teoricamente, operam na proteção da população islâmica e xiita. A palavra Quds, por exemplo, significa Jerusalém, que seria o foco inicial de atuação da unidade.
Sob seu comando, as Forças Quds estabeleceram um emaranhado de alianças e passaram a atuar em diversos países no Oriente Médio. O Irã passou a apoiar com dinheiro, treinamento militar e, eventualmente, com seus próprios soldados, os houthis no Iêmen; o Hezbollah, no Líbano; e milícias xiitas na Síria e no Iraque. O próprio general era responsável pelas negociações com os líderes locais, além de ir a campo para treinar e, em alguns casos, lutar ao lado das milícias. Entre fatos e mitos, um general iraniano declarou há cinco anos que o próprio Soleimani, com outros 70 homens, deteve o avanço do Estado Islâmico em Irbil, no Iraque. Coincidentemente, 70 era o número de companheiros que morreram com o imã Hussein na Batalha de Karbala.
— Esses dois homens (Soleimani e Abu Mahdi al-Muhandis, líder das Forças de Mobilização Popular iraquianas, também morto no ataque dos Estados Unidos) lideraram as forças que derrotaram o Estado Islâmico no Iraque. E o mesmo vale para a Síria: o general Soleimani ajudou a barrar o avanço das forças terroristas que eram apoiadas pela Arábia Saudita. Se não fosse por ele, bandeiras pretas [símbolo do EI] estariam erguidas em Damasco, Bagdá e em outras capitais — disse Mohammad Marandi, analista político e professor da Universidade de Teerã.
O fortalecimento desses grupos locais resultou no aumento da influência de Teerã nos países onde eles atuam. Recentemente, o site Intercept publicou uma série de reportagens com documentos vazados da inteligência iraniana e iraquiana que mostram a atuação pessoal do general Soleimani na política do Iraque. Em um golpe de mestre, o general aproveitou a rede de espionagem montada pelos Estados Unidos – e que ficou abandonada com a retirada americana do país – para garantir proeminência na política local e consolidar assim um importante aliado regional.
Dentre outros benefícios, essa rede de alianças tornou praticamente inviável o ataque direto de uma grande potência ao Irã, mesmo tendo enorme vantagem militar. Isso porque uma ação contra Teerã desencadearia a reação dos aliados iranianos — os chamados “proxies”, ou procuradores — em diversos países, afundando em crise toda a região do Oriente Médio. Provavelmente, não deixariam de ser atingidos os parceiros dos Estados Unidos, notadamente Israel e Arábia Saudita, assim como os interesses comerciais do mundo ocidental seriam afetados, principalmente o fornecimento de petróleo.
— Além de aumentar sua influência na região, o Irã tem usado pelos últimos 20 anos suas alianças como poder de dissuasão contra ataques dos Estados Unidos e de Israel — afirmou Hamed Mousavi, professor de Ciências Políticas da Universidade de Teerã.
Considerando seus feitos como comandante das Forças Quds e sua popularidade entre os iranianos, surpreendeu a alguns que Soleimani não tenha sido escolhido como novo comandante da Guarda Revolucionária do Irã, em abril passado. Na ocasião, no entanto, analistas ressaltaram que sua importância era evidente independentemente do cargo que ocupava. Ele já era considerado no Ocidente a segunda pessoa mais importante do Irã, atrás apenas do líder supremo Ali Khamenei.