Tupiniquins são sobreviventes do genocídio diz DNA
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Os índios tupiniquins do Espírito Santo são sobreviventes do genocídio que eliminou os tupi da costa brasileira. A sabedoria que aquela comunidade mantém sobre sua própria origem foi confirmada agora por um estudo de DNA, indicando que os cerca 500 integrantes da etnia que vivem no estado estão entre os últimos representantes do grupo indígena que encontrou Pedro Álvares Cabral.
— Os tupiniquins são a fotografia de 1500 — diz a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, líder do grupo de pesquisa autor da descoberta. Analisando dados de DNA colhidos de 47 tupiniquins de Aracruz (ES) e comparando-os com os de 55 indígenas de outras regiões do Brasil, a cientista conseguiu reconstruir a história de ocupação tupi no litoral, o grupo que dominava a costa de Santa Catarina até o Pará.
O trabalho foi possível porque em 2004, cientistas do Espiríto Santo colheram amostras de sangue da população para um estudo de genética médica. Vários anos depois de participarem de um estudo para investigar a hereditariedade de problemas cardiovasculares, os indígenas consentiram que os dados pudessem ser usados para sequenciamento de DNA, conta José Geraldo Mill, médico da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), que liderou aquele estudo.
Para colocar os dados genéticos de ancestralidade em contexto, porém, cientistas compararam o genoma dos tupiniquins com DNA de outros índios do Brasil, coletados pelo biólogo Francisco Salzano na década de 1960. Professor emérito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Salzano morreu em 2018, quando a pesquisa ainda estava em andamento, e coassina postumamente o artigo científico que Tábita e outros colaboradores publicam hoje na revista científica PNAS.
— Ele chegou a ler o artigo, e faleceu logo depois — conta a cientista.
O trabalho dos cientistas pode ter grande impacto histórico e arqueológico, porque confirma que os tupiniquins de hoje pertencem ao grupo indígena que surgiu há mais de 5.000 anos na região do Rio Madeira e que, 2.000 anos atrás, começou a migrar para a costa atlântica da América do Sul.
Alguns historiadores e linguistas acreditavam que a costa teria sido povoada por descendentes do mesmo povo que originou os guaranis do sul do país (estes, por sua vez, também descendentes dos tupis). O que o estudo mostra, porém, é que isso não faz sentido em termos da distribuição genética dos índios brasileiros. Os tupi da costa, na verdade, chegaram ao Atlântico pela foz do Amazonas, e depois seguiram rumo ao sul pelo litoral.
— A gente usou essas duas hipóteses como modelos para tentar diferenciar o que aconteceu — conta Marcos Araújo Castro e Silva, geneticista da USP que assina o estudo como autor principal. — No fundo a gente não estava testando arqueologia nem linguística. A gente usou essas hipóteses, que já existiam há muito tempo, para testar testar com os dados genômicos.
Essa diferença implica que, no momento em que chegaram à costa, há cerca de 2.000 anos, os tupis já eram um povo relativamente avançado tecnologicamente: agriculturalistas que dominavam técnicas sofisticadas de cerâmica. O que forçou a onda migratória, dizem os cientistas, provavelmente foi o crescimento populacional e a incapacidade de abrigar tribos muito grandes no local de origem da etnia.
Os tupiniquins que forneceram amostras de DNA para o estudo hoje já são bastante miscigenados, bem como outras populações do Brasil. O genoma da maior parte dos indivíduos, porém, ainda é de origem indígena.
— Uma coisa impressionante é que eles se miscigenaram com europeus e africanos, mas não se miscigenaram com outros índios — conta Tábita. — Eles são tupiniquins.
Analisando no DNA os trechos em que “letras” do código genético diferem de um indivíduo para outro, os cientistas foram capazes também de identificar as principais marcas de introgressão de genoma de outros povos ocorreram naquela população. A marca do ciclo do ouro, a partir de 1750, quando muitos índios foram escravizados, ficou no DNA dos tupiniquins, bem como o aumento do tráfico negreiro no século 19 e a chegada dos primeiros europeus após a abolição da escravatura.
— A gente consegue ver no genoma dos tupiniquins todas as marcas migratórias da população brasileira — diz Tábita.
A etnia indígena que virou símbolo de algo que é genuinamente brasileiro, porém, sofreu uma pressão brutal. Com uma população estimada em 200 mil indivíduos em 1500, os tupiniquins foram reduzidos a um grupo de 55 indivíduos no século 18, e foi declarada oficialmente extinta em 1870.
— Se você olhar no site do IBGE, está dizendo que os tupiniquins foram extintos. Eles existem, oficialmente, porque eles se autodeclararam tupiniquins em1975, e a Funai reconheceu esse grupo miscigenado que reapareceu naquela época — conta a pesquisadora. — Entre 1780 e 1975, porém, eles não existiam oficialmente.
Antes de publicar os resultados de sua pesquisa na PNAS, Tábita e outros autores do artigo viajaram até Aracruz para apresentar a descoberta aos tupiniquins da região. A ideia era mostrar aos índios parte da história do povo que havia sido resgatada pelo DNA, uma forma de retribuir a contribuição dada na forma de amostras de sangue para a pesquisa.
— Quando mostrei para eles essa imagem do site do IBGE, eles ficaram muito irritados, porque não sabiam que eles eram declarados extintos — conta a pesquisadora. — Isso é considerado ofensivo.
Cientistas estão agora tentando resgatar a história de outros povos costeiros menores que podem ter preservado alguma ancestralidade tupi costeira também, sobretudo os tupinambás, da Bahia, talvez os pataxós. Todos esses povos já perderam suas línguas originais, mas preservam parte de sua história como relatos que sobreviveram por tradição oral. Agora, o DNA pode contar outra parte da história.