A relação entre Flávio Bolsonaro e o miliciano morto

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Andre Coelho/Bloomberg

A morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de chefiar a milícia Escritório do Crime, trouxe de volta à tona as ligações dele com o hoje senador Flávio Bolsonaro (sem partido), primogênito do presidente da República.

Foragido desde janeiro de 2019, Nóbrega morreu durante uma operação policial no interior da Bahia. “Buscamos efetuar a prisão, mas o procurado preferiu reagir atirando”, declarou o secretário da Segurança Pública da Bahia, Maurício Teles Barbosa.

Nos últimos 20 anos, a trajetória de Nóbrega se cruzou com a de Flávio Bolsonaro algumas vezes. O filho de Jair Bolsonaro já fez homenagens ao ex-policial militar e empregou em seu gabinete a mãe e a mulher dele, esta por mais de uma década.

Essas ligações vieram a público por causa de duas investigações: um suposto esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, quando assessores devolvem parte dos salários, e o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL).

Nóbrega era acusado de chefiar a milícia e o grupo de assassinos profissionais aos quais, segundo investigadores, estão ligados dois acusados de participação direta na morte da vereadora em março de 2018. Ele também era suspeito de se beneficiar financeiramente do esquema de repasses ilegais no gabinete de Flávio Bolsonaro.

O advogado de Nóbrega, Paulo Emilio Catta Preta, declarou a jornais brasileiros que seu cliente era acusado sem provas e temia ser morto como “queima de arquivo”. Em nota, o PSOL exigiu “esclarecimentos sobre as circunstâncias da morte do miliciano”, peça-chave, segundo o partido, para “revelar diversos crimes”.

Desde o fim de 2018, Flávio tem afirmado ser vítima de acusações infundadas e de uma “campanha difamatória com o objetivo de atingir o governo de Jair Bolsonaro”. Disse ainda ter defendido e homenageado mais de uma centena de agentes de segurança ao longo de sua trajetória parlamentar.

A família Bolsonaro tem um extenso histórico de homenagens a policiais e outros agentes de segurança em moções e condecorações concedidas pelo poder público.

Dois dos homenageados foram alvos em uma operação deflagrada em janeiro de 2019 (Os Intocáveis) pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e pela Polícia Civil fluminense contra acusados de integrar uma milícia.

Adriano Magalhães da Nóbrega, que estava foragido desde então, e Ronald Paulo Alves Pereira, preso na ação, foram homenageados na Alerj entre 2003 e 2005 por indicação do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

Ambos são suspeitos de integrar o Escritório do Crime, grupo de extermínio que pode, segundo investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro, estar envolvido no assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes. Ainda não foram identificados, porém, a relação da milícia com esses crimes e os mandantes deles. Os dois ex-policiais presos sob acusação dos homícidios negam ter cometido os crimes.

Em outubro de 2003, o filho do presidente propôs, “com orgulho e satisfação”, uma moção de louvor a Nóbrega, que ao longo de vários anos de atividade policial desempenhou sua função com “excepcional comportamento”, “dedicação, brilhantismo e galhardia”.

“Imbuído de espírito comunitário, o que sempre pautou sua vida profissional, atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão”, afirma o texto da moção. A redação é a mesma usada em outra dezena de homenagens feitas por Flávio a policiais no âmbito da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

Dois anos depois, Nóbrega estava preso sob acusação de homicídio de um guardador de carros que havia denunciado policiais e recebeu uma nova homenagem de Flávio na Casa, desta vez com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa.

Naquele ano, 2005, Nóbrega foi condenado pelo Tribunal do Júri, mas no ano seguinte conseguiu um novo julgamento e foi solto e absolvido. Ex-oficial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), ele sempre negou todas as acusações.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o filho do presidente disse ter homenageado Adriano Nóbrega naquele ano porque acreditava que o policial era injustiçado ao ser acusado “de ter matado um trabalhador que, na verdade, era um traficante”.

“Resolvi abraçar aquela causa. Até homenageei ele depois como forma de mostrar que acreditava na palavra dele. Ele, agora, está sendo acusado de um monte de coisa. Se ele estiver errado, que a lei pese sobre ele. Como exigir de mim saber de algo que 15 anos depois veio à tona?”, respondeu.

Também em 2005, o então deputado federal Jair Bolsonaro também saiu em defesa pública de Nóbrega. Em discurso na Câmara dos Deputados, ele disse ter presenciado integralmente pela primeira vez a um Tribunal do Júri, onde “estava sendo julgado um tenente da Polícia Militar de nome Adriano”.

Segundo Bolsonaro, naquela ocasião, oficiais da PM estiveram ao lado da Promotoria o “acusando de tudo que foi possível, inclusive se esquecendo do fato de que ele sempre foi um brilhante oficial e foi, se eu não me engano, o primeiro na Academia da Polícia Militar”.

Bolsonaro demonstra irritação ao relatar que um outro PM, acusado de ter atirado contra a vítima, foi inocentado, mas Nóbrega, que liderava a ação, acabou condenado.

“A quem interessa a condenação pura e simples de militares da polícia do Rio de Janeiro, sendo culpados ou não?”, questiona o parlamentar. Em seguida, ele passa a acusar o casal Garotinho, que comandava o Estado naquela época, de ceder à pressão de organizações internacionais pela punição de policiais violentos e de perseguir autoridades da PM que tentem defender esses agentes em processos judiciais.

Até novembro de 2018, Flávio Bolsonaro empregou em seu gabinete a mãe e a mulher de Nóbrega, que foi expulso da PM fluminense em 2014 por relação com jogo do bicho.

Os cargos das duas parentes vieram à tona em janeiro de 2019, quando foi deflagrada a Operação Os Intocáveis contra a milícia conhecida como Escritório do Crime.

O Ministério Público do Rio de Janeiro afirma que essa milícia cometia agiotagem, receptação de carga roubada, extorsão de moradores, cobrança de taxas para prover serviços ilegais e intimidação com uso da força.

A mãe de Adriano e ex-assessora de Flávio Bolsonaro, Raimunda Veras Magalhães, também é citada no relatório do então Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf, hoje UIF) que identificou movimentações financeiras atípicas do ex-assessor do filho do presidente, Fabrício Queiroz.

Queiroz passou a ser investigado pela Promotoria do RJ em 2018, depois que o Coaf identificou movimentação financeira atípica e incompatível com sua renda.

O órgão, que atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro, apontou ao Ministério Público diversas transações suspeitas feitas por ele, incluindo uma centena de saques em dinheiro e um cheque de R$ 24 mil depositado na conta da hoje primeira-dama da República, Michelle Bolsonaro. O presidente disse que o amigo estava pagando de volta um empréstimo.

Segundo Flávio Bolsonaro, a mãe de Nóbrega foi indicada e supervisionada por Queiroz, responsável por apresentá-lo a Adriano Nóbrega em 2003. “Não posso ser responsabilizado por atos que desconheço, só agora revelados com informações desse órgão”, afirmou Flávio, em referência ao relatório do Coaf.

Para ele, o parentesco entre suas duas ex-assessoras e um acusado de comandar milícia é “mais uma ilação irresponsável daqueles que pretendem me difamar”. E completa: “Aqueles que cometem erros devem responder por seus atos”.

Queiroz, por sua vez, disse sempre ter agido de “forma lícita”. Segundo ele, funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro depositavam parte de seus salários em sua conta a fim de ampliar, informalmente e sem o conhecimento do parlamentar, a base de funcionários ligados ao então deputado estadual.

Ele também negou ter se “beneficiado de qualquer recurso público para si ou terceiro”. Segundo sua defesa, a investigação do Ministério Público não conseguiu encontrar nenhuma irregularidade cometida por ele.

O avanço das investigações do Ministério Público sobre o suposto esquema de rachadinha no âmbito do gabinete de Flávio Bolsonaro indicou uma relação mais profunda com Adriano Nóbrega do que as nomeações de duas parentes dele.

Segundo a Promotoria, Fabrício Queiroz usou empresas controladas por Nóbrega para lavar parte dos recursos repassados por servidores do gabinete de Flávio.

Estima-se que a mãe e a então mulher de Adriano, Danielle Mendonça, receberam mais de R$ 1 milhão de salários, e pelo menos quase R$ 200 mil foram repassados direta ou indiretamente para Queiroz.

Raimunda, mãe de Adriano, é sócia de um restaurante em Rio Comprido, na zona norte do Rio, em frente a uma agência bancária na qual foram depositados R$ 91.760 em dinheiro vivo para Fabrício Queiroz, separados em 18 depósitos.

Segundo o Ministério Público, um celular de Mendonça apreendido durante as investigações continha troca de mensagens entre ela e Queiroz.

Em uma delas, ele envia a ela seu contracheque para que fizesse seu Imposto de Renda, um forte indício, de acordo com investigadores, de que ela não trabalhava naquela função e somente servia de laranja no esquema.

Queiroz também alerta Mendonça para ter “cuidado com que vai falar no celular” e a orienta sobre eventuais depoimentos à Promotoria no âmbito da investigação da suposta rachadinha.

Segundo promotores, Nóbrega indicou em uma troca de mensagens com Mendonça que era beneficiado pelo esquema no gabinete de Flávio Bolsonaro: “Contava com o que vinha do seu tmbm”. Ela ficou empregada ali entre setembro de 2007 e novembro de 2018, e acabou exonerada por Queiroz quando as investigações vieram a público.

BBC News