Morre o cineasta Zé do Caixão

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Foto: Marcos Alves

O cineasta paulistano José Mojica Marins, que ficou conhecido em todo o país pelo personagem Zé do Caixão, morreu nesta quarta-feira, aos 83 anos, em decorrência de uma broncopneumonia. Ele deixa uma obra de mais de 40 filmes como diretor e mais de 60 produções como ator, entre curtas-metragens, longas, documentários e séries. O velório será aberto ao público, no MIS-SP, nesta quinta-feira, em horário ainda a confirmar.

Seu último trabalho na direção foi em “Memórias da Boca” (2015), que reuniu episódios de vários realizadores. Na mesma época, foi visto atuando em “Entrando numa roubada”, de André Moraes, estrelado por Deborah Secco. Nos últimos anos, vivia recluso em São Paulo, já com a saúde debilitada.

Foi durante um pesadelo, sonhado no início de 1963, que o inferno acenou pela primeira vez para Marins. O diretor tinha então 27 anos e já contabilizava dois longas-metragens em seu currículo: o faroeste “Sina de aventureiro” (1957) e o drama “Meu destino em suas mãos” (1961). No sonho, ele era arrastado para uma cova por um homem todo de preto, que tinha seu rosto.

Ao despertar assoberbado, com a imagem daquele sujeito na cabeça, ele criou um dos personagens mais famosos da história do cinema brasileiro: o coveiro Josefel Zanatas, conhecido (e temido) ao longo de seus 51 anos de existência pela alcunha de Zé do Caixão. E com ele, a produção audiovisual do Brasil abria os olhos para um dos filões mais populares da ficção: o horror, gênero no qual Mojica virou um mestre, dirigindo e atuando.

— Quando despertei do pesadelo, no comecinho de 1963, a ideia do Zé já estava definida, e então comecei a correr atrás de sobras de negativo em estúdios de São Paulo, como a Vera Cruz e a Maristela, para poder filmar uma história em que aquele homem procurava a mulher ideal para ser a mãe de seu filho — contou Mojica ao GLOBO em 2013, quando comemorou o jubileu de seu exu de unha grande, batizado em homenagem a um coveiro amigo. — O nome Josefel veio de um cara que eu conhecia e que mexia com defuntos, um agente funerário chamado Josef. Zanatas era brincadeira com Satanás.

No filme “À meia-noite levarei sua alma”, de 1964, a sombria criação de Mojica ganhou vida e abriu um projeto de trilogia, cujo tema era a busca do personagem por um ventre perfeito, capaz de lhe dar um herdeiro. Zé voltaria numa sequência, de 1966, “Esta noite encarnarei no teu cadáver”. Cada um vendeu cerca de 600 mil ingressos — isso pelas estatísticas oficiais do extinto Instituto Nacional do Cinema (INC), pois outras fontes registram 1 milhão de pagantes por cada longa.

O desfecho da série, “Encarnação do demônio”, começaria a ser rodado em 1967, mas foi interrompido por problemas com a Censura. A ditadura militar voltaria a patrulhar Mojica em “Ritual dos sádicos” (1969), também chamado de “O despertar da Besta”, e “Finis hominis”, de 1971. No caso de “Encarnação do demônio”, porém, mais do que patrulha, houve uma série de situações soturnas de bastidor.

— A Censura implicou com o projeto por anos e só me liberou na década de 1980. Mas em 1987, quando o produtor Augusto de Cervantes tentou retomar a obra, um problema pulmonar o matou antes que a fizéssemos. Logo depois, outro produtor, Ivan Novais, entrou na parada e se comprometeu a produzi-la. Ligou pra mim todo contente dizendo que iria fazer um almoço para comemorar o negócio. Morreu no dia de fechar o contrato, enquanto preparava uma peixada pra gente. Tinha alguma coisa de errado com a gente — contou Mojica em 2006, o ano em que conseguiu enfim filmar “Encarnação do Demônio”, trazendo Jece Valadão (1930-2006) em seu derradeiro trabalho.

O longa foi lançado dois anos depois, conquistando o prêmio de melhor filme no Festival de Paulínia. Sua bilheteria, contudo, foi de assombrar: apenas 25.762 pagantes. Mesmo desapontado, Mojica não desistiu de filmar, orgulhoso de ter uma multidão de fãs, que se expandiu a partir de suas incursões na TV, em programas como “Além, muito além do Além” (1967-68), na Bandeirantes, “Show do outro mundo” (1981), na Record, “Cine Trash” (1996), de novo na Band, e “O Estranho Mundo do Zé do Caixão” (2008), no Canal Brasil.

Com a televisão, a fama de Mojica se disseminou pelas novas gerações, que descobriram pérolas cinematográficas dirigidas por ele como “Exorcismo negro” (1974), a obra-prima do diretor. Sua fama foi disseminada também com a ajuda do livro “Maldito!”, cinebiografia de Mojica (e de seu alter ego satânico) escrita pelos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti.

Nem todo longa que Mojica dirigiu teve Zé do Caixão em cena, a começar pelo maior sucesso do cineasta, a comédia “A virgem e o machão”, vista por 1,3 milhão de brasileiros. Esse título fez parte das experiências do diretor em filmes eróticos, na fase da pornochanchada e do sexo explícito, quando rodou filmou sob o pseudônimo de J. Avelar títulos como “O Dr. Frank na clínica das taras” (1986).

Mas foi com a cartola do Zé na cabeça que o cineasta arrumou seguidores em vários cantos no mundo, a começar pelos EUA. Lá, o Zé do Caixão, rebatizado de Coffin Joe, angariou uma legião de fanáticos por histórias de dar medo. Até retrospectiva no Festival de Sundance, um canteiro de cineastas autorais, Mojica ganhou, em 2001. O misticismo em torno dele correu o planeta, mas ele sempre dissociou o personagem que encarnou ao longo de cinco décadas de qualquer ideia de satanismo.

— Não acredito no Diabo, mas creio em Deus e confesso ter o pé atrás com coisas místicas. O Zé apareceu num período em que eu estava abalado com um projeto difícil de tirar do papel, que acabei não fazendo, chamado “A sentença de Deus”. Uma atriz que chamei para fazer o filme morreu afogada antes de filmarmos. Chamei outra, que também se afogou. Com a terceira, ia tudo bem, até que ela, vindo do Paraná para filmar comigo, sofreu um desastre de ônibus e perdeu uma perna. Alguma coisa tinha ali — lembrou o diretor em uma de suas últimas entrevistas.

O Globo