Imprensa internacional acusa Bolsonaro de prejudicar favelas
Foto: Ricardo Moraes/Reuters
Enquanto o presidente brasileiro Jair Bolsonaro minimiza a epidemia de Covid-19, o coronavirus já começou a chegar nas favelas cariocas. Nas comunidades, a geografia e a insalubridade tornam quase impossível seguir as recomendações de higiene e confinamento.
Sarah Cozzolino, correspondente da RFI no Rio de Janeiro
“No Complexo do Alemão, as pessoas andam nas ruas, entram em lojas, tomam cerveja no boteco, como se nada estivesse acontecendo”, conta Yone Dutra, moradora do complexo e motorista de Uber, ao descrever o dia dia dos moradores por mensagens no WhatsApp. Ela toma muitas precauções, porque mora com duas pessoas idosas : parou de trabalhar, sai apenas para ir ao mercado, e quando volta vai direto para o banho. “Ouço muitas vezes pessoas idosas falando que tudo isso é uma besteira, que tem que voltar a trabalhar, que o vírus não vai pegar aqui… muitos absurdos !”, se indigna a moradora.
De fato, a difusão massiva de fake news e a declaração do presidente comparando o coronavírus a uma “gripezinha”, dificultaram a tarefa dos líderes comunitários. “O pronunciamento irresponsável do presidente destrói parte do nosso trabalho”, lamenta Vânia Ribeiro, vice-presidente da associação de moradores da comunidade dos Tabajaras, em Copacabana. Um trabalho que visa conscientizar as pessoas, explicar a importância de ficar em casa, a facilidade do contágio da doença…
Para o desespero de Yone, por vezes é difícil convencer até os membros da própria família da falta de veracidade das informações absurdas que muitas vezes circulam nas redes sociais. Foi em sua própria casa, por exemplo, que ela ouviu o boato de uma suposta “cura” milagrosa para a Covid-19, “descoberta pelos militares”,e já disponível para venda.
Mas a situação não é igual em todas as favelas e áreas dos morros. Na parte mais alta do complexo do Alemão, por exemplo, onde o tráfico predomina, “todo mundo fica quieto em casa”, diz Yone. Em várias favelas, os traficantes emitiram um toque de recolher “e falaram que se não for respeitado, iria ter o corretivo… e corretivo de traficante é muito pesado”, explica ela.
A situação sanitária torna ainda mais difícil conter a epidemia nas favelas, onde o abastecimento de água é muito irregular, quando não é inexistente. “Como pedir para as pessoas lavarem as mãos quando elas não têm nem banheiro ?” se desespera Renata Werneck, enfermeira e moradora do Tabajaras. “Saneamento não existe nas favelas”, resume Mônica Francisco, deputada estadual pelo PSOL. “Não tem abastecimento de água, tratamento de esgoto, e nem rede de águas pluviais.”
Na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), a deputada Renata Souza (PSOL) apresentou um projeto de lei para criar “meios alternativos” de distribuição de água em comunidades e periferia, como caminhões-pipa.
A arquitetura das comunidades também dificulta o confinamento. Com a precariedade das construções nas favelas, ficar em casa pode virar um pesadelo. Algumas famílias moram com até 5 ou 6 pessoas em dois cômodos. E acaba sendo muito difícil manter as crianças em casa.
Além das dificuldades sanitárias, os moradores de comunidades já enfrentam uma crise econômica. No Morro do Tabajaras, uma grande parte dos moradores são pessoas que trabalham na praia, em barracas ou como vendedores ambulantes. Com o confinamento, todas as atividades pararam.
No mês passado, o IBGE estimou que 2,8 milhões de pessoas são trabalhadores informais. Sem o dinheiro ganho durante o dia, o trabalhador informal não tem condições de fazer compras para alimentar a sua família. “As pessoas estão entrando num estado de desespero”, observa Vânia Ribeiro, “ouvi de vários moradores que se eles não vão morrer de coronavírus, vão morrer de fome.”
Ao ver essa situação, diferentes setores da sociedade começaram a se mobilizar de forma independente para ajudar os mais vulneráveis, organizando “vaquinhas” ou recolhendo doações. Segundo Yone Dutra, até os traficantes estão ajudando algumas famílias com cestas básicas no complexo do Alemão. Ela mesmo criou uma vaquinha online para ajudar outros moradores.
Em meio a várias iniciativas de solidariedade, um grupo de chefs de cozinha batizado “comida de resistência” decidiu juntar os estoques de comidas que sobraram dos bares e restaurantes da cidade para doar a moradores de comunidades. “Achei importante distribuir para as pessoas que estariam mais prejudicadas com essa crise”, diz João Diamante, um dos idealizadores da iniciativa, originário de comunidade.
O grupo arrecadou cerca de de 700kg de comida, entregue em várias comunidades de diferentes zonas do Rio. “Se isso será suficiente ?”, pergunta Renata Souza ao ver essas iniciativas florescerem. “Acredito que não. Vamos ter que aliar a solidariedade com as ações do poder público, que demoram a chegar. Precisamos de uma conjunção de forças sociais.”