Pobres vão morrer na porta dos hospitais, diz cirurgião
Foto: Folhapress/Daniel Guimarães
Aos 73 anos, Miguel Srougi, um dos cirurgiões mais celebrados do país, critica a forma como o governo federal tem conduzido a crise do coronavírus. Para o professor da USP, nossa infraestrutura hospitalar sinaliza que os mais vulneráveis ficarão sem atendimento no pico da pandemia.
Qual é a sua perspectiva com a pandemia?
Eu sou urologista, não sou um infectologista, não posso fazer uma revisão científica profunda. Mas vemos os dados quantitativos e eles se pautaram por curvas que vão sendo construídas por autoridades médicas do mundo inteiro, que acompanharam a evolução da disseminação do coronavírus no mundo. Eles mostram que, quando um país passa de cem casos, a curva que vinha subindo de forma lenta de repente empina e, a cada dois ou três dias, dobra os números dos casos. E nessas horas isso desorganizou todos estes países do ponto de vista de recursos e de capacidade para atender os doentes. Aqui no Brasil a gente está assistindo a este processo como espectador, no mundo inteiro morrendo gente, todo mundo assustado, e o Brasil otimista.
Quais exemplos podem servir para o Brasil?
As autoridades não estão falando mais em número de mortos, de casos, mas em arrumar hospital, leitos. Temos exemplos emblemáticos. Estas medidas de fazer o chamado lockdown (proibir as pessoas de saírem às ruas) não impedem o vírus de se difundir, ela apenas achata a curva dos casos, ela continua lentamente, e isso permite que o sistema de saúde vá se readequando e dando apoio aos doentes. Mas estas medidas não curam a pandemia, que só vai ser resolvida quando descobrirem remédio ou vacina. O Brasil pôde assistir ao que ocorria na China e na Itália, e perdeu tempo de se preparar, por exemplo, transformando fábricas para fazer respiradores.
A política atrapalha o combate ao coronavírus?
O problema do Brasil está muito claro: existem no governo federal pessoas que estão flertando com as trevas. O presidente, de forma incompetente e imoral, menosprezou a gravidade da pandemia, julgou que com palavras poderia desviar a atenção popular e impedir uma constatação óbvia: a ruína da assistência médica no Brasil, principalmente a dos mais necessitados. Os grupos mais bem posicionados socialmente vão sobreviver, pois têm mecanismos de defesa mais fortes.
O Brasil já deveria estar todo em lockdown?
O lockdown representa medida extrema, que deve ser deve ser adotada o mais cedo possível, já que a demora implica em mais pessoas infectadas e mais mortes. Contudo, a decisão para sua implementação não é simples, nem todos aceitam a perda da liberdade. O que se observou na presente pandemia é que os países mais atingidos implementaram inicialmente o distanciamento social e recorreram ao lockdown quando a situação sanitária e social alcançou níveis críticos insustentáveis. Ao final, todos reconhecem a pertinência dessa ação.
E quanto a nossa infraestrutura hopitalar?
Há um estudo muito curioso: nos países com mais de 10 leitos hospitalares por mil habitantes, todos tiveram baixo índice de mortes no coronavírus, coisa de 0,2% a 0,3%. Nos países que têm menos de 4 ou 5 leitos para cada grupo de mil habitantes, todos estão tendo alta mortalidade. Hong Kong tem 14 leitos para cada mil habitantes, o Japão, tem 10 leitos para cada mil habitantes e nestes países não morreu quase ninguém. A Itália tem 3,2 leitos para cada grupo de mil habitantes e foi esse desastre. O Brasil tem 1,95 leitos para cada mil habitantes. Estes números mostram que na hora que chegarmos no pico, não vai ter hospital para colocar este pessoal, não há leitos.
Está correto criar leitos em estádios?
É a forma que se tem agora de rapidamente melhorar a assistência. Quem vai sofrer mais são os pobres, mais vulneráveis. Eles vão morrer nas portas dos hospitais, não vão conseguir entrar, muito menos receber um tubo para respirar e sobreviver à pneumonia. O pobre vai morrer na calçada.
O senhor prevê algum choque entre hospitais públicos e privados?
Os hospitais já estão reduzindo o número de cirurgias eletivas, o que não for urgente será adiado. Hospitais estão se preparando para receber pacientes. Em áreas específicas, este pessoal é muito competente e está fazendo isso direitinho. Mas como teremos aumentos de casos, isso pode afetar muito. Nos últimos dez anos foram fechados de 40 mil a 50 mil leitos no país do SUS, por falta de recursos. Um sistema combalido, degradado em um país que tanto necessita. Os governos que recorrem aos hospitais privados têm uma lógica, mas nenhum deles vai transformar suas estruturas, caras e complexas, em hospitais de campanha. Mas certamente eles terão que colaborar.
E no “day after”, qual será o legado do coronavírus?
Na área política vai surgir um consenso claro: só as empresas privadas não conseguem fazer um país progredir. É importante ter um Estado forte também. Estamos vendo isso agora. Estado forte consegue conter esta ameaça à nação e estados que não são fortes não conseguem . Aquela história de entregar tudo para as empresas privadas não dá certo. A grande consequência social é que as pessoas vão aprender que a solidariedade e a compaixão são muito importantes dentro de qualquer sociedade. A gente não pode mais ficar impassível quando um morro despenca e morrem pessoas simples, que não têm capacidade para sobreviver dignamente, que moram nestes locais por absoluta falta de opção. Acho que o coronavírus vai unir a sociedade e deixar as pessoas um pouco mais solidárias e dotadas de compaixão. Agora mesmo os fortes estão ameaçados, os pobres vão morrer mais, mas os ricos também vão morrer.