O pente de Babu e o racismo estrutural

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Imagem: Reprodução

Em uma manhã de confinamento no Big Brother Brasil 20, a modelo Ivy Moraes se deparou com o pente garfo de seu colega de reality, o ator Babu Santana. Ela segurou o objeto e, aos risos, perguntou a outros participantes: “Quem penteia cabelo com um ‘trem’ desses?”. Eles responderam que o utensílio pertencia a Babu, o único homem negro da casa. Ivy seguiu gargalhando.

A reação da participante, no último dia 15 de março, provocou indignação em parte do público e deu origem à hashtag #EuPenteio, a fim de responder ao questionamento da modelo. A mobilização serviu para alertar o quanto o comportamento de Ivy não é mero desconhecimento, mas faz parte de uma lógica de racismo estrutural. Além disso, mostrou que o instrumento é fundamental para cuidar de cabelos crespos, da mesma forma que a escova é usada por quem tem fios lisos ou ondulados.

A pesquisadora Hanayrá Negreiros: “O pente garfo é lido como um objeto de poder” – Divulgação
“O pente garfo é lido como um objeto de poder”, explica Hanayrá Negreiros, pesquisadora e educadora em moda, história cultural e curadoria. “Ele é feito para o nosso tipo de cabelo e a combinação é tão perfeita que ele pode ser usado como um tipo de adorno capilar. Os fios crespos comunicam a negritude, consolidam uma busca pela ancestralidade e o orgulho por um cabelo que é tão renegado pela sociedade. Ao assumir tal aparência, a pessoa expressa que tem orgulho do seu black power e o usa como manifestação política, de uma luta antirracista. Isso faz com que se crie uma simbologia em torno desse objeto. Talvez seja por isso que Babu usa o pente garfo como uma espécie de amuleto.”

A explicação da pesquisadora está em consonância com a fala de Babu, semanas depois do ocorrido, em conversa com outras participantes do programa. “Antigamente você não podia ter cabelo comprido porque era ligado a algo feio, sujo ou subversivo. Quando você pega o garfo e abre o cabelo, mostra que o black é a coroa e o pente é a libertação”, disse o ator.

Pentes da exposição “Origins of the Afro Comb”, de 2013, realizada no Fitzwilliam Museum da Universidade de Cambridge, na Inglaterra
O pente garfo tem origem milenar. Seus primeiros registros datam de seis mil anos atrás no Egito antigo. Posteriormente, ele foi difundido para outras civilizações do continente africano. Na época, os penteados consolidavam a identidade e o status social de quem utilizava.

Amailton Magno de Azevedo, doutor em história e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), observa que o cabelo crespo é emblemático para as sociedades contemporâneas atuais. Por isso, atribui ao pente garfo a condição de objeto simbólico e afirmativo da beleza e do orgulho negros. Quando isso é exposto de maneira negativa, como feito por Ivy ao adotar tom de deboche, o efeito é uma desvalorização dessa construção.

“O Babu representa uma narrativa de admiração da negritude na atualidade. Essa questão está posta lá na geração sessentista e setentista, de afirmar e exaltar de maneira orgulhosa o desejo de ser negro. Esse movimento não se restringiu aos jovens dos Estados Unidos. Ele se popularizou na juventude negra urbana e mundial. Essa afirmação black positiva chegou ao Brasil, em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Rio de Janeiro, onde obteve mais força devido ao movimento musical do soul carioca. Tim Maia [cantor que o participante do reality interpretou no cinema] usava na capa dos discos o cabelo que o Babu está usando hoje, um crespo armado”, diz o historiador.

Veiculados em um programa de grande audiência, símbolos da negritude como o pente levam debates antes restritos a núcleos a um público maior. “O movimento serve para a gente refletir sobre dois prismas: o prisma de como ele provoca uma valorização orgulhosa da negritude; e o prisma de como ele desvela o racismo, quando as frases mais grosseiras são exibidas publicamente em uma escala de massa. A valorização da negritude pode incomodar e revelar o racismo brasileiro”, diz Amailton.

Podemos pensar nesse cabelo como um sinal de provocação ao racismo e uma ousadia, ironizando a discriminação que está no olhar, no pensamento e que não se manifesta concretamente

Para o professor, ao se afirmar e valorizar a mensagem do pente, Babu provoca reflexões importantes. “Ele massifica um debate que nos anos 1970 estava posto apenas no movimento negro e, agora, nos anos 2010, tem tomado uma proporção que envolve a cultura de massa. É algo novo e importante de se pensar.”

Uol