Parcela de vulneráveis é invisível para governo
Foto: Ivan Franchet/Divulgação
Um dos maiores especialistas em pobreza e desigualdade, Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton e Senna e um dos idealizadores do Programa Bolsa Família, diz que precisamos preservar nosso capital humano:
– Está na hora de proteger o capital humano e ele é muito valioso, não tem porque arriscar isso. A gente está sofrendo as consequências de um país que tem um conjunto de pessoas que, na verdade, são invisíveis para o governo.
Em 2000, o pesquisador dissera, criticando a composição do gasto público, que se o dinheiro fosse jogado do helicóptero, chegaria mais rápido às mãos dos mais pobres. Para ele, é isso o governo está fazendo hoje:
– É exatamente isso que o governo está fazendo agora, mas trata-se de algo insustentável no longo prazo.
E ressalta que o governo tem de ser pressionado para “ir o mais rápido que puder”.
Como fazer para o dinheiro chegar mais rapidamente aos mais vulneráveis?
– As medidas governo são mais que bem-vindas, mas nesse momento, a gente está meio cego. Não sabemos exatamente quem são as pessoas que perderam emprego, as que não estão podendo trabalhar, não estão podendo ter renda. É muito difícil identificar essas pessoas nesse momento. A primeira medida do governo é transferir renda para todas aquelas pessoas que, de alguma maneira, tem um cadastro e são os prováveis candidatos a estarem afetados, mas nem todos estão afetados e tem vários que não estão nessa lista e provavelmente estão afetados. Sem um trabalho mais profundo e local, vai ser muito difícil o governo federal saber quem são essas pessoas.
A nível federal, eles estão fazendo aquilo que dá para fazer. Corretamente, perceberam que não é um problema de dinheiro. Recursos, na verdade, existem e é o momento certo para o governo aumentar sua dívida e pegar esse dinheiro emprestado. O governo tem o trabalho duro de fazer com que o dinheiro chegue aos MEI (microempreendedor individual), por exemplo, de maneira segura, sem fazer uma fila enorme para receber o dinheiro. É um problema logístico que tem que ser resolvido de alguma maneira. A gente está sofrendo as consequências de um país que tem um conjunto de pessoas que, na verdade, são invisíveis para o governo. A grande jogada é uma questão de informação local sobre quem está mais necessitado. Isso vai ser dinâmico, alguém tem alguma poupança e consegue sobreviver. Tem famílias que alguém importante pode ficar doente ou morrer, e essa família que antes não tinha tanta necessidade assim, pode passar a ter. O mapa de quem precisa deve ser muito volátil, e isso vai requerer um sistema de informação local muito eficaz, vai envolver colocar não só os centros de referências de assistência social (cras) para dar essa informação, mas usar esse exército de agentes comunitários para dar essa informação.
Como fazer essa operação?
– De imediato, a gente pode fazer distribuição de recursos mais generosa e sem muita preocupação com a focalização delas. Mas, para isso realmente ser sustentável, tem que avançar em melhorar o nosso sistema de informação. Esse é momento para se começar a pensar em frentes de trabalho, ou seja, lidar com toda essa crise, que não só destrói várias atividades econômicas, mas por outro lado, cria outras atividades econômicas que não existiam. Por exemplo, esse conhecimento local, localizar e atender as pessoas que mais precisam, tornar as comunidades mais saudáveis em termos de saneamento, de saúde pública, de tal maneira que se consiga evitar mais a contaminação. Uma série de atividades mais ligadas à limpeza, à água, à prestação de serviço a essa população que pode gerar empregos. Obviamente, esse trabalho tem que ser feito com todo o apoio da saúde pública. Tem uma série de ocupações que dão enorme demanda. Seria função dos governos locais, estaduais e federal identificar as ocupações e pagar por esse trabalho.
Não seria mais fácil dar o auxílio a todo mundo, sem olhar renda?
– É exatamente isso que o governo está fazendo agora, mas trata-se de algo insustentável a longo prazo. E, ao mesmo tempo, temos que pressionar para o governo ir o mais rápido que puder” .
Essas frentes de trabalho não poderiam aumentar o risco sanitário ?
– Poderia se fosse mal feito. Se você precisa testar um número maior de pessoas, precisa de apoio para fazer esses testes. Você quer que o transporte urbano, em algum momento, não pare de funcionar, você precisa que esses ônibus sejam higienizados com uma frequência muito maior. Tem que identificar famílias isoladas em comunidades, idosos, que precisam de atendimento. Parar um processo de contaminação envolve um monte de trabalho. Há pessoas idosas que podem morrer, não da doença em si, mas porque está faltando algum remédio e tem que levar o remédio para ela. É uma situação parecida com uma guerra. Uma série de outras ocupações surgem e temos que coordenar isso e fazer com que essas ocupações possam ser realizadas com toda a segurança. Nesse momento, o que a gente quer não é trabalhar menos é trabalhar de uma maneira completamente respeitosa com a saúde pública.
Esse modelo também exigiria testagem em massa, testando sempre essa população. Não estamos testando em massa ?
– Não necessariamente precisaria de uma testagem em massa. Não entendo muito bem o porquê, mas vou respeitar a opinião dos grandes especialistas brasileiros, de não testar em massa. A maneira mais óbvia de controlar tudo isso é informação. Mas você pode fazer uma frente de trabalho sem testar em massa. Vai ter que testar todo mundo que estiver na frente, da mesma maneira que está fazendo no hospital, na medida que vão visitar outras pessoas. Não sei exatamente o que o Brasil está fazendo nesse momento com os agentes comunitários de saúde, são quase 200 mil. Eles deveriam estar todos testados e não deveriam necessariamente parar de trabalhar. Deveriam estar de alguma maneira contribuindo para esse processo.
Como está vendo a atuação do governo. Não está demorando muito a dar assistência, a distribuir os recursos ?
– O governo sempre demora demais, obviamente pelo tamanho da necessidade das pessoas, o governo está sempre demorando demais. Temos que celebrar que não estão mais no mundo das ideias, estão tentando coisas concretas. Eu acho que tanto a saúde quanto a economia já deram bastante sinais que estão levando isso bastante a sério. Mas aí não sei julgar o quanto que dá para andar ainda mais rápido nesse processo, mas a gente tem que demandar que eles andem mais rápido.
Tem uma discussão sobre isolar somente os grupos de riscos e deixar a economia andar para não ter uma recessão mais forte. Concorda com essa visão?
– Parece impossível. Primeiro teria que ser capaz de prever exatamente quem vai sofrer de uma maneira severa com isso, até mesmo morrer, o que é difícil de prever. A probabilidade é mais baixa para certos grupos, mas não é zero. Isolar um grupo de outro grupo é extremamente difícil. Está na hora de proteger o capital humano e ele é muito valioso, não tem porque arriscar isso. Estatisticamente falando, quanto mais rápido controlar a difusão do vírus é melhor do que tentar isolar as pessoas que, em princípio, seriam mais sensíveis a ele. Acho essa ideia péssima. A economia tem de entender que nós vamos perder uma renda por uma boa razão, nós estamos protegendo o nosso capital humano. Temos um capital humano que se a gente usar agora, não vamos ter ele depois, então nós vamos poupar.
A transferência de renda tem que permanecer por quanto tempo?
– Eu acho que elas desfocalizadas e genéricas do jeito que a gente está fazendo nesse momento, dificilmente vamos conseguir manter por muitos meses. Muito menos um ano. As consequências desse evento são extremamente mal distribuídas, vai afetar muito algumas ocupações e menos outras ocupações. Temos que manter essas transferências junto com as frentes de trabalho por um período longo de tempo, mas temos que ganhar conhecimento da situação local para torná-las mais bem focalizadas. Provavelmente, teremos que continuar pagando por um ano ou mais, mas crescentemente mais bem focalizada. Acho que o primeiro momento é certo, vai de qualquer jeito e para todo mundo. E aí vai ganhando informação, tornando mais seletivo, mais focalizado e permanecer com isso por algum tempo até que todo mundo consiga se recuperar desse evento. Para alguns, vai ser muito rápido, outros vão ter um longo período de recuperação econômica. Nesse caso, vamos ter que dar apoio para eles, principalmente aos pequenos empresários informais, que vão precisar de apoio com as dívidas que forem acumuladas nesse período. As ações que se tem tomado até agora, são ações na suposição que tudo vai acabar em muitos poucos meses, mas todo mundo sabe que, daqui a seis meses, ainda vamos estar discutindo essa questão. Na rota de saída, mais gente vai sofrer danos um pouco mais duradouros. Não vai conseguir manter uma política mais geral, sem grande foco, por muitos meses. Frente de trabalho é uma maneira de fazer isso focalizado.