Professor da FGV diz que Bolsonaro se acha dono da PF

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Foto: Germano Lüders

O novo ministro da Justiça, André Mendonça, e o novo diretor-geral da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, assumem seus cargos com o desafio de fazer o presidente da República, Jair Bolsonaro, compreender que não cabe ao governo interferir em investigações ou cobrar diligências da corporação. Para o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo da FGV-SP, o entendimento do mandatário é um obstáculo a ser superado.

“O presidente da República parece que não tem noção a respeito das normas jurídicas aplicadas. Ele entende que cada delegado da Polícia Federal é um agente seu a quem ele pode dar ordens. Está completamente equivocado”, afirmou o especialista.

Mendonça assumiu no lugar de Sérgio Moro, que deixou a pasta acusando Bolsonaro de tentar ter acesso indevido a investigações da PF. O estopim para a saída do ministro foi a demissão de Maurício Valeixo do comando da corporação.

Ainda segundo Sundfeld, ninguém pode supor que Ramagem, que substituiu Valeixo, tentará, por ser próximo do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), intervir no inquérito que investiga fake news contra integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). “Ninguém pode em princípio supor que o diretor da Polícia Federal exercerá pressões indevidas sobre o delegado responsável pelos inquéritos. Se isso vier a acontecer, o delegado responsável tem todos os elementos para resistir a pressões indevidas”, afirmou.

Como avalia a nomeação de André Mendonça para a pasta da Justiça?

O dr. André é um advogado da carreira dos advogados públicos, portanto é essa a sua qualificação para exercer uma função, que não é uma função jurídica, é uma função política de ministro da Justiça, mas para qual a qualificação jurídica tem a sua utilidade. O desafio dele é conseguir lidar com as demandas do presidente da República que justamente causaram problema para o seu antecessor (Moro). O desafio não é exatamente jurídico, é o desafio de conseguir explicar ao presidente da República os limites da sua intervenção.

A nomeação de ministro da AGU para a Justiça é comum?

É comum porque a qualificação jurídica ajuda a ter uma visão por dentro do funcionamento da administração. E o desempenho da função jurídica coloca em contato o profissional com o presidente da República e eventualmente surge uma relação de confiança, como parece ser o caso do dr. André. Aí o desafio dele, evidentemente, é conseguir estabelecer uma relação saudável com o presidente da República.

O trabalho do Ministério da Justiça com a PF envolve apenas questões orçamentárias e remanejo de pessoal, correto?

Isso. O ministro da Justiça não tem uma função de interferência nem de condução nos inquéritos policiais. Os inquéritos policiais são feitos para servir ao trabalho do Ministério Público e da Justiça. E muitas das diligências são decorrências de pedidos do MP e ordens da Justiça – a Polícia Federal é uma executora dessas funções que têm a ver com o mundo judicial. Portanto, o comando do ministro da Justiça em relação à atividade-fim da Polícia Federal é nenhum, o ministro da Justiça não manda no modo como a Polícia Federal executa as investigações, em que crimes ela investiga, nada disso. Ele cuida de questões administrativas, da vinculação da Polícia Federal com o Orçamento Público, mas não com relação à sua atividade-fim. E óbvio que, se o ministro da Justiça não tem o comando da atividade-fim da Polícia Federal, muito menos o Presidente da República.

O presidente tem ciência de que o Ministério da Justiça não comanda as investigações da PF?

Olha, eu me baseio sobretudo no discurso que o presidente fez em resposta ao Sérgio Moro. O presidente da República disse, no seu entendimento, que ele tem o direito de saber o que se passa nas investigações da Polícia Federal e tem o direito de exigir determinadas providências em inquéritos ou fora de inquéritos. E deu exemplo de um depoimento, que ele teria exigido que a PF colhesse, do seu interesse privado, para resolver desconfianças em relação ao seu comportamento. Então, ele manifestou uma visão sobre sua relação com a Polícia Federal que é profundamente equivocada. A PF não é um braço do presidente da República. A função do presidente da República é apenas tomar providências administrativas para garantir que a Polícia Federal cumpra a atividade-fim, que não está sob o comando do presidente.

O que Bolsonaro parece não compreender?

O presidente da República parece que não tem noção a respeito das normas jurídicas aplicadas. Ele entende que cada delegado da Polícia Federal é um agente seu a quem ele pode dar ordens. Ele está completamente equivocado, não compreende o que é atividade de polícia judiciária. O nome técnico – polícia judiciária – explica do que se trata, é uma polícia vinculada à função judicial. Não é uma polícia presidencial. O (novo) ministro vai ter que explicar ao presidente coisa que o ministro Moro parece que não conseguiu: que não se trata de uma guarda presidencial.

O que acha da nomeação de Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF dada a proximidade dele com Carlos Bolsonaro?

O delegado nomeado formalmente preenche os requisitos, que é ser um delegado da Polícia Federal. Então ele está qualificado. O fato de ele ter uma relação de confiança ou até de intimidade com o presidente da República e sua família não o desqualifica como diretor da Polícia Federal. Evidentemente, podem ocorrer problemas por outra razão, não pela intimidade ou pela confiança que ele tem, mas pelo fato de que o presidente da República e os seus filhos parecem não ter uma noção correta sobre qual é a função da Polícia Federal e, portanto, de seu diretor. E ele então terá exatamente o mesmo desafio do ministro da Justiça: apesar de toda intimidade que possa ter, conseguir explicar ao presidente e aos seus filhos que a Polícia Federal não é a sua guarda pessoal.

Há complicações?

Isso pode ser mais desafiador pelo fato de que há inquéritos policiais que estão em curso e, segundo o noticiário, podem envolver o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, por conta das fake news. Evidentemente a proteção do inquérito mais imediata está garantida pelo fato de que o delegado responsável não é o diretor, é uma pessoa que já estava na função e foi mantida por decisão da Justiça.

Se refere à determinação do ministro Alexandre de Moraes para que os mesmos delegados sigam no inquérito das fake news?

Exatamente. Ninguém pode em princípio supor que o diretor da Polícia Federal exercerá pressões indevidas para sobre o delegado responsável pelos inquéritos. Se isso vier a acontecer, o delegado responsável tem todos os elementos para resistir a pressões indevidas. Mas não estou supondo que vá acontecer porque não se espera isso de um diretor da Polícia Federal. Até porque, se ele fizesse pressões indevidas, estaria cometendo crime e ele com certeza sabe disso. A preocupação, portanto, não tem a ver com a figura do chefe da Polícia Federal, mas tem a ver com as convicções que o presidente da República manifestou publicamente. E que, segundo o ex-ministro (Moro), utilizou, para tentar interferências. O ex-ministro mostrou inclusive uma, que era preocupante: uma das razões dadas pelo presidente para querer mudar o diretor da Polícia Federal era a existência de investigação contra deputados ligados a ele.

Como avalia o episódio?

Isso mostra uma visão completamente imprópria do presidente da República. Não é do ministro que ele acaba de nomear e nem do delegado. E como são profissionais da área de direito, qualificados para isso, passaram por concursos públicos, eles com certeza sabem que esse tipo de interferência é absolutamente inviável. Talvez eles, sendo pessoas da maior intimidade do presidente, sejam capazes de explicar que ele tem uma noção errada a respeito da Polícia Federal.

Estadão