Contágio e óbitos crescerão sem isolamento e economia vai parar

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Foto: Divulgação/Secreteria Municipal de Segurança de SP

O Brasil já ultrapassou o número de 100 mil contaminados pelo novo coronavírus e a cada dois dias vê novos mil óbitos sendo acrescentados a seu balanço, o que demonstra como a disseminação de covid-19 tem se acelerado no país. Ainda assim, há quem acredite que o número de novos casos diminui e defenda o fim das medidas de isolamento social —como o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), respaldado por alguns setores da indústria e comércio. Especialistas ouvidos pelo UOL, no entanto, alertam que os números de casos e óbitos não são os únicos a serem considerados ao tomar esta decisão.

O presidente tem argumentado que o número de casos e mortes no Brasil é baixo se comparado ao tamanho da população. Ele chegou a postar dados sobre mortes por milhão de habitantes, o que, como já mostrou o UOL, não é a forma mais indicada para avaliar a progressão da doença.

Bolsonaro e outras autoridades têm utilizado o dado, que induz a erro, para advogar contra o isolamento social. Na semana passada, o presidente utilizou a aceleração como prova de que decretar quarentena não freia as mortes e chamou a medida de “inútil”, ignorando os dados científicos que dizem que só sairemos do isolamento depois que aderirmos de fato a ele, em taxas acima de 70% e 80%.

Mas quais números devem ser observados para decidir o melhor momento de afrouxar o isolamento social? O UOL lista os principais segundo estudos e médicos:

O principal dado com que devemos nos preocupar seria o da taxa de reprodução da doença. Um artigo publicado em 14 de abril na revista Science aponta que a melhor maneira de observar o comportamento da covid-19 em um país é por meio de seu número básico de reprodução, o chamado R0. Esse índice calcula quanto uma pessoa contagiada é capaz de contagiar outras.

Se o R0 estiver acima de 1, significa que a contaminação está crescente. Se for próximo de 1, ela está controlada. Caso seja menor que 1, o surto está caminhando para o fim. De acordo com o artigo, quanto mais próximo de 1 esse índice estiver, mais perto estaremos de sair do isolamento.

Uma estimativa feita pela Imperial College de Londres sugeriu que o R0 brasileiro é próximo de 3, um dos mais altos atualmente.

“O objetivo dos bloqueios atuais é empurrar R para abaixo de 1. Uma vez que a pandemia é domada, os países podem tentar diminuir as restrições, mantendo R pairando em torno de 1”, diz o artigo da Science.

Foi assim que a Alemanha decidiu que poderia fazer um afrouxamento “cauteloso” de suas medidas. Com uma taxa de reprodução estimada em 0,76 segundo o Instituto de Doenças Infecciosas Robert Koch (RKI), o país decidiu liberar escolas, instituições e alguns setores do comércio para retomar parcialmente suas atividades, mas com cuidados estritos. A Áustria também já fez o mesmo.

De acordo com a publicação, a única forma de diminuir este número de reprodução é com o isolamento. Com menos pessoas nas ruas entrando em contato umas com as outras, a capacidade de um paciente infectar outras diminui.

Porém, apesar de ter começado a implementar essas medidas em março, o Brasil ainda tem uma taxa de adesão ao isolamento muito baixa, tornando o distanciamento insuficiente.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o prefeito da capital, Bruno Covas (PSDB) já avisaram que não irão atender aos pedidos de afrouxamento das medidas com a adesão abaixo de 50%. A meta, na realidade, é de que mais de 70% da população fique em casa, mas os números paulistas têm ficado entre 40% e 50%. Ambos já ameaçaram adotar medidas mais duras para forçar esse número.

Segundo o infectologista especializado pelo Hospital Emílio Ribas, Natanael Adiwardana, é somente com o distanciamento acima de 70% que será possível alcançar um R0 próximo de 1.

Indo na mesma direção que o governador paulista e apesar da oposição do presidente, na semana passada, o Ministro da Saúde, Nelson Teich, disse não será possível liberar do isolamento com a curva em ascendência, criticando cidades que já o estão fazendo.

Antes, ao lado de Bolsonaro, Teich defendia um “isolamento inteligente”, sem especificar o que exatamente isso significava. O presidente, porém, gostaria de isolar apenas as pessoas infectadas, os idosos e os grupos de risco.

Segundo o artigo da Science, isso só seria possível no início da contaminação em um país, quando ainda era possível localizar os contaminados e seus contatos. Uma vez que as barreiras iniciais falham na contenção, o isolamento total é a única saída.

“O distanciamento social é a espinha dorsal da estratégia atual, que retarda a propagação do vírus. Mas também tem o maior custo econômico e social, e muitos países esperam que as restrições possam ser relaxadas, conforme o isolamento de casos e o rastreamento de contatos ajudem a manter o vírus sob controle”, diz o estudo.

No entanto, monitorar a transmissibilidade no Brasil encontra a barreira da baixa capacidade de testagem. Segundo o médico infectologista do Hospital das Clínicas da USP (HCFMUSP), Evaldo Stanislau, observar o R0 é de fato o melhor caminho, mas pode ter problemas de aplicação no Brasil.

“Todas as medidas que temos tomado de distanciamento social e outra medidas não farmacológicas caminham nesse sentido, abaixar o R0 para menor que 1. Mas, de fato, não conhecendo a dimensão de nossa epidemia —uma das condições colocadas pela OMS para pensar em relaxar o distanciamento social —, fica muito empírico tomar qualquer decisão”, diz.

No ranking do site Worldometers, que reúne dados da OMS, dos Centros de Controle e Prevenção dos países e publicações científicas, o Brasil está abaixo da 20ª posição em quantidade de testes feitos, com 339.552.

Esse número, porém, não é confirmado pelo Ministério da Saúde, pois, como revelado pelo UOL, o governo não sabe a quantidade de testes feitos. Com esse volume, o Brasil teria uma média de 1,5 mil teste para cada milhão de habitantes, muito distante de outros países.

Além disso, a maior parte dos testes brasileiros são os chamados testes rápidos, que detectam a quantidade de anticorpos no paciente, presumindo que, ao contrair a doença, o paciente desenvolva imunização. No entanto, o teste é criticado por especialistas por ter baixa sensibilidade e dar falsos negativos e positivos.

O próprio ministro da Saúde já afirmou que uma testagem em massa é complicada e possivelmente ineficiente por utilizar testes rápidos, não tão confiáveis quantos os demais.

Ao todo, são mais de 2 milhões de testes rápidos já distribuídos contra 524.536 testes RT-PCR, que detecta de fato o vírus. O governo pretende distribuir ainda mais 2 milhões de testes rápidos e 900 mil testes RT-PCR.

“O que precisaremos é de capacidade de testagem por RT-PCR ampla com resultados rápidos, associados ao superefetivo e rápido rastreamento de contactantes —provavelmente usando ferramentas eletrônicas, como o celular— para colocar em quarentena cirúrgica os casos suspeitos e seus contatos”, avalia Stanislau.

Outra forma de saber como a doença está se comportando no país é observando o número de pessoas ainda suscetíveis à contaminação e os pacientes já recuperados.

“A dinâmica de reprodução é traduzida como a capacidade que a doença ainda tem de se propagar de forma acelerada numa comunidade de pessoas suscetíveis, e usa fatores como o número de pessoas suscetíveis, infectadas e recuperadas para ser determinada”, explica Adiwardana.

Pessoas suscetíveis são aquelas que ainda não têm anticorpos contra o vírus e, portanto, estão expostas à contaminação. Esse número diminui conforme a doença atinge mais pessoas. Por ainda estar muito no início da contaminação —o primeiro paciente foi confirmado no dia 26 de fevereiro—, a população suscetível no Brasil é da ordem dos milhões.

O número de infectado no Brasil é de 114.715, segundo divulgou nesta terça-feira o Ministério da Saúde, porém, a pasta assume que há subnotificação de casos, pois, de novo, não há testagem para todos. Também segundo o ministério, o número de recuperados é de 48.221.

De acordo com Adiwardana, a doença só estará em desaceleração quando a diferença entre esses três dados for a menor possível. “A ideia toda é exatamente fazer com que a relação entre casos novos e casos recuperados seja cada vez menor, ao ponto de a disseminação da doença se desacelerar”, diz.

Como é possível observar no gráfico abaixo, a diferença entre os casos novos e os recuperados ainda é considerável:

Contudo, vale ressaltar que a subnotificação e a baixa capacidade de testagem também afetam nossa compreensão dos casos ativos e recuperados no país.

“Fica difícil fazer uma estimativa precisa diante da falta de dados completos, principalmente do número de novos casos e de casos vigentes. Por isso, é extremamente importante investir em ciência em tecnologia, tanto em tempos fora da pandemia como, principalmente, durante a pandemia, de forma a termos maior agilidade e recursos para produzir testes acessíveis à nossa população”, avalia.

O ideal nesta pandemia seria desenvolver uma vacina a fim de tornar o maior número possível de pessoas imunizadas e, assim, reduzir o número de pessoas suscetíveis. Com menos pessoas vulneráveis, a doença não se reproduzirá, mesmo que o vírus ainda circule no ambiente. No entanto, uma vacina está prevista para só daqui quase dois anos, segundo a OMS.

“Se tivermos entre 60 e 70% de positivos para anticorpos, é possível que tenhamos criado um efeito rebanho, ou seja, mesmo que o vírus circule, ele não se expandirá com a mesma facilidade e velocidade, pois a possibilidade de encontrar susceptíveis é menor”, explica Evaldo Stanislau.

Essa lógica, porém tem sido utilizada de maneira distorcida por algumas autoridades que advogam pela “imunização de rebanho”, na qual as pessoas ficam livres para se infectar e desenvolver defesas naturalmente contra a doença.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi a principal voz a favor dessa estratégia no início da pandemia até que os números de mortos começaram a crescer no Reino Unido e ele próprio foi hospitalizado com covid-19. No Brasil, o ex-ministro Osmar Terra é um dos que defende a medida e respalda o presidente Jair Bolsonaro.

A estratégia é alvo de críticas, já que ainda não está claro o quanto o coronavírus é capaz de imunizar. Além disso, o alto número de pessoas infectadas ao mesmo tempo causaria uma pressão imensa sobre o sistema de saúde. Isso significa dizer que boa parte dos pacientes não conseguiria tratamento por conta da superlotação dos hospitais.

“Não é factível esperar toda a população entrar em contato para obtermos alta taxa de imunidade porque isso ocorreria de forma sobremaneira, que iria superpor toda a capacidade do sistema de saúde nacional e geraria grave impacto socioeconômico”, diz Adiwardana.

Evaldo Stanislau também ressalta que observar como os outros países estão tomando esta decisão pode servir como norteador para o Brasil.

“Com R0 menor que 1, conhecendo a prevalência de anticorpos —e torcendo para que efetivamente protejam as pessoas—, tendo testes e vigilância e capacidade assistencial suficiente, podemos pensar no relaxamento das medidas de controle. Além de observar como está indo lá fora, o que está dando certo, ou não”, finaliza.

Uol