Atos antirracismo podem fortalecer Trump
“Parem de olhar seus celulares, vão conversar com os vizinhos e os convençam a votar.”
Os gritos vinham de um americano de 37 anos que, em cima de sua bicicleta, ganhou a atenção —e os aplausos— de 40 manifestantes que se reuniam na manhã desta quarta-feira (3) em frente à Casa Branca.
O ciclista afirmou que tem comparecido aos protestos contra o racismo e a violência policial em Washington desde a semana passada, mas teme que os atos que já tomaram mais de 360 cidades dos EUA fortaleçam a reação conservadora e ajudem a reeleger Donald Trump.
Segundo o americano, é preciso motivar jovens e negros que estão nas ruas a votar em novembro e, assim, tentar impedir que o passado se repita.
Protestos contra o racismo e a violência policial beneficiaram republicanos em outras disputas presidenciais, quando o partido não ocupava o poder central nos EUA.
Com o discurso da lei e da ordem, Richard Nixon se elegeu em 1968, em meio à convulsão social frente ao assassinato do líder negro Martin Luther King.
Em 2014, 2015 e 2016, durante o governo de Barack Obama, o primeiro presidente negro da história dos EUA, diversas cidades registraram atos contra o racismo e a violência policial no país.
Ferguson, Baltimore, Nova York, Chicago, St. Louis e Charlotte foram regiões que fervilharam pouco antes de Trump derrotar a democrata Hillary Clinton e chegar à Presidência.
É preciso considerar os diferentes contextos sócio-econômicos que figuravam em cada época e acrescentar que, em 2016, os protestos também refletiam o cansaço dos americanos com a política tradicional.
Desta vez, Trump é o presidente no cargo, o que deve testar o roteiro do passado em meio à pandemia e à grave crise econômica. O presidente, porém, já deixou claro que decidiu repetir o discurso da ordem diante da turbulência para tentar manter unida sua base de eleitores conservadores, brancos e pouco escolarizados.
Ainda está pouco claro qual será o efeito dos protestos nas eleições deste ano, mas é consenso entre analistas que os atos têm uma janela pequena para conseguir resultados práticos que motivem os manifestantes a ir às urnas em novembro —o voto não é obrigatório nos EUA.
Especialista em direitos humanos, o professor Justin Hansford, da Universidade Howard, afirma que ativistas americanos tendem a votar em candidatos com propostas compatíveis com suas bandeiras e que não devem ir às urnas se a pauta for somente estar contra Trump.
“Os manifestantes não votam a menos que o candidato tenha uma agenda que os motive. Não vão votar em um democrata só porque ele não é Trump.”
Virtual candidato democrata e ex-vice do primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama, Joe Biden tem o desafio de reverter essa perspectiva.
Ele teve apoio dos negros nas primárias do partido, mas não conquistou jovens que estavam com o progressista Bernie Sanders e ainda resistem a um nome moderado.
Desde que os protestos começaram, na semana passada, Biden tem tentado construir a ideia de que tem um plano de governo que dialoga com as demandas dos protestos.
Diz que não vai negociar no medo e na divisão, como faz o atual presidente, e defendeu uma reforma do sistema de Justiça americano.
Um dos ativistas negros que têm ido aos protestos em Washington admite que Biden motiva pouco, mas diz que votará no democrata porque teme a reeleição de Trump.
“As pessoas que se mobilizam por esse muro de policiais, e por todos os outros muros que Trump defende, têm um líder, alguém que representa esse ódio. Nós não temos. Biden é o candidato democrata, eu planejo votar nele porque não quero que Trump continue como presidente, mas Biden não me inspira”, disse Bernard, que não quis informar seu sobrenome.
Em 2016, os negros também estavam desmotivados e não saíram para votar em Hillary Clinton como haviam feito para eleger Obama em 2008 e em 2012.
A ausência desse grupo em estados-chave para a disputa foi determinante para a vitória de Trump.
Em comparação com 2012, quando Obama os levou em número recorde às urnas, a participação dos negros em 2016 caiu 4,7% em todo o país. Em Michigan e Wisconsin, onde Trump venceu por margem apertada, a queda foi ainda mais acentuada e chegou a 12%.
Segundo o professor de Howard, os manifestantes poderiam mudar esse cenário se os protestos tivessem resultados práticos, motivando a vontade de fazer política dos jovens e negros também nas urnas.
Há dez dias, os EUA mergulharam em uma série de protestos contra o racismo e a violência policial após a morte de George Floyd, um homem negro e desarmado que teve o pescoço prensado contra o chão por quase nove minutos pelo joelho de um policial branco.
O agora ex-agente Derek Chauvin foi detido e está desde domingo (31) em uma prisão de segurança máxima, onde espera julgamento.
A ação, gravada por testemunhas, viralizou nas redes sociais e mobilizou o país.
Os ativistas pedem que o policial —e os outros três oficiais que acompanharam a abordagem violenta— sejam condenados por assassinato.
Nesta quarta, a acusação de Chauvin foi ampliada para os seus colegas e os quatro vão responder pelo assassinato de Floyd.
“Se alguma mudança efetiva tiver que acontecer no nosso sistema de Justiça, precisa ser nas próximas semanas porque, em dois meses, os políticos vão querer mudar de assunto e passar a ignorar esses pedidos”, afirma o professor Hansford.
Ele avalia que as pessoas devem continuar nas ruas para pressionar o Congresso americano e os legisladores estaduais e municipais a aprovarem leis que mudem o modo como a polícia e o Judiciário atuam no país —favorecendo a corporação e prejudicando negros e pobres.
Os negros hoje representam 13% dos 328 milhões de americanos, mas são a maioria das vítimas da Covid-19 e dos mais de 30 milhões de desempregados.
Pesquisas do fim de semana, já sob impacto dos protestos, mostravam Biden dez pontos percentuais à frente de Trump em todo o país —53% a 43%.
É preciso esperar para ver se os maiores protestos nos EUA desde a década de 1960 vão impulsionar eleitores às urnas ou se funcionarão mais uma vez como munição para o discurso ultraconservador de que é preciso reprimi-los com violência para colocar ordem no país.
Folha de SP