Mercado financeiro acha que pandemia será menos grave

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Foto: Nelson Almeida / AFP

Comprar ações brasileiras foi, nas últimas semanas, um bem-sucedido desafio à gravidade. Enquanto o país descendia à categoria de possível epicentro mundial da pandemia, o governo de Jair Bolsonaro desferia ataques quase diários à democracia e os números oficiais atestavam um PIB adentrando o que poderá ser a pior recessão em 120 anos, o índice Ibovespa, o que reúne as principais ações negociadas na Bolsa de Valores, tinha seu melhor maio desde 2009, saltando 8,6% no mês. No começo de junho, uma barreira psicológica foi ultrapassada. Na terça-feira 2 o índice subiu acima dos 91 mil pontos, atingindo o maior patamar desde 10 de março, véspera da declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Parte importante da explicação desse comportamento dos investidores exige voltar um pouco mais no tempo. A B3, a Bolsa brasileira, foi a mais castigada pela pandemia. Em 23 de janeiro, quando o novo coronavírus parecia um assunto chinês e algo que, na pior das hipóteses, continuaria apenas na Ásia, o Ibovespa chegava a seu pico, 119.527 pontos. Em dois meses, o índice caiu quase à metade, na queda mais aguda e abrupta de sua história. “Nosso mercado está se recuperando de um patamar muito deprimido, porque havia antecipado um cenário mais catastrófico”, disse Luis Felipe Amaral, sócio gestor da Equitas, que tem R$ 5 bilhões em seus fundos.

O salto registrado em maio, portanto, é comparável ao caso de alguém que caiu no buraco e conseguiu subir alguns metros, mas ainda está longe da superfície. O investidor que comprou R$ 1.000 em Ibovespa no dia do pico, 23 de janeiro, tinha R$ 531 quando a Bolsa bateu no chão, em março, e R$ 741 no começo de junho. De março para cá, os setores que ajudaram a puxar o índice para cima foram o das plataformas de varejo on-line, aquecido pela maior demanda provocada pela pandemia, e o de commodities, impulsionado por um real mais fraco. Mas, mesmo com essa última alta do Ibovespa, o índice ainda perde cerca de 20% no ano.

Entre as razões que levaram os investidores a acreditar que as ações tinham caído demais está a percepção de que o futuro, aqui e no exterior, será menos pior do que vinha sendo pintado. “Vamos passar por uma grande depressão mundial sincronizada, mas na sequência, provavelmente, veremos um crescimento global também sincronizado, o que é raro”, acrescentou Fernando Lovisotto, diretor de investimentos da Vinci Partners, com R$ 37 bilhões sob gestão. Para Carlos Sequeira, chefe de Pesquisa de Ações para América Latina do banco BTG Pactual, esta crise, ao contrário de outras, gera em muitos uma expectativa de que terá um limite de tempo definido. “A ideia é que ela veio por causa do vírus e, em algum momento, vai se descobrir um tratamento ou uma vacina e, depois disso, a economia vai se recuperar rápido”, disse, resumindo o que vê como a percepção do mercado.

“O INVESTIDOR QUE COMPROU R$ 1.000 EM IBOVESPA NO DIA DO PICO, 23 DE JANEIRO, TINHA R$ 531 QUANDO A BOLSA BATEU NO CHÃO, EM MARÇO, E R$ 741 NO COMEÇO DE JUNHO. NO ANO, A QUEDA DO IBOVESPA AINDA É DE CERCA DE 20%”

Da China aos Estados Unidos, passando pela Europa, economias que estavam fechadas foram relaxando as quarentenas. Aos poucos, o mesmo começa a acontecer no Brasil. A aposta bastante otimista de parte do mercado é que a previsão de aberturas seguidas de novas ondas de reinfecção e quarentenas talvez não se confirme. Aliado a isso, o mercado acionário americano tem mantido o bom humor desde o anúncio de um pacote de estímulo econômico que compreende US$ 2 trilhões em ajuda direta e uma injeção nos mercados pelo Federal Reserve (Fed), o banco central, da ordem de 20% do PIB dos Estados Unidos, o que acaba tendo um efeito “feel good” aqui. “A melhora das condições financeiras globais beneficia também os mercados emergentes, embora o Brasil tenha um cenário mais complicado”, disse Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e sócio diretor da Tendências Consultoria Integrada.

De praxe, as cotações já embutem mais futuro que presente, pois a Bolsa nada mais é que a corrida para antecipar a compra de papéis “baratos” com mais perspectivas de valorização. Mas a postura “whatever it takes” (“custe o que custar”) dos governos para salvar a economia acabou aumentando a distorção entre os preços no mercado acionário e a realidade da economia real. “Os pacotes de estímulo estão tentando criar uma ponte entre as economias pré e pós-pandemia. As cotações na Bolsa estão refletindo muito menos a situação do momento do que de costume”, afirmou Luiz Fernando Figueiredo, sócio e diretor executivo da gestora Mauá Capital e ex-diretor do Banco Central. Um meme que circulou na última semana traduz em vídeo esse descolamento. Um homem com as palavras “Wall Street” coladas ao peito brinca, animado, num balanço enquanto uma casa pega fogo ao fundo, uma referência à alta da Bolsa americana em meio aos protestos contra o racismo que tomaram conta de dezenas de cidades americanas. “As Bolsas tentam antecipar movimentos e sempre exageram”, disse William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue Securities.

No caso brasileiro, a Bolsa ainda tem vento a favor por causa da Tina, ou “there is no alternative” (“não há alternativa”), uma brincadeira dos gestores para descrever a situação dos investidores que convivem com juros baixos. Aqui a taxa básica da economia, a Selic, está em 3%, seu menor patamar da história. Nessa situação, a remuneração das aplicações em títulos do governo é baixa. Com esse cenário, para muitos dos que ambicionam ganhar mais, a Bolsa aparece como a alternativa.

O efeito Tina no mercado de renda variável, que já era claro no ano passado, continuou neste ano, mesmo depois do estouro da pandemia. Pelos dados da B3, a Bolsa ganhou entre 300 mil e 350 mil novos investidores entre março e abril, totalizando mais de 2 milhões . Uma das novatas na Bolsa é Walquiria Felizardo, de 34 anos, coordenadora de Assuntos Socioeconômicos da BHP, uma mineradora e petrolífera anglo-australiana. Felizardo afir mou que sempre teve muito medo de investir em ações, tanto pela volatilidade como pela “especulação desenfreada” . Durante o isolamento social, porém, começou a ver canais de investimento e educação financeira e mudou de ideia. Decidiu tirar o dinheiro da poupança para investir em ações. Entre os analistas, muitos acreditam que há espaço para atrair ainda mais gente para a B3. Primeiro, porque é bem possível que a Selic mantenha a tendência de queda. Em segundo lugar, na comparação internacional, os brasileiros investem pouco em ações. Pelos cálculos do banco BTG Pactual, menos de 12% do total investido vai para o mercado acionário, ante mais de 40% em alguns países ricos.

“PARTE DOS INVESTIDORES ESTÁ COMPRANDO AÇÕES COM A PREMISSA DE QUE NÃO DEMORARÁ A SURGIR UM TRATAMENTO MAIS EFICAZ CONTRA A COVID-19. PARA ELES, ESTA É UMA CRISE COM DATA PARA ACABAR E CHEIA DE OPORTUNIDADES”

Olhando a corrida de brasileiros para a B3, é possível ficar com a impressão de que nada do que o presidente Bolsonaro diz e faz tem efeito no mercado financeiro. Seria como se todos os seus ataques às instituições democráticas, suas declarações sobre a pandemia e as crises políticas que cria passassem em branco e não representassem riscos maiores aos investidores. Não é bem assim. Os gringos continuam fugindo da Bolsa brasileira. Para eles, o rei está nu. Enquanto o Ibovespa gozava seu melhor maio em 11 anos, nesse mesmo mês eles sacaram R$ 7,4 bilhões do mercado. No ano, esse saldo está negativo em R$ 76,8 bilhões, maior volume já registrado para o período.

“Os investidores da Bolsa, sobretudo as pessoas físicas, ficaram aliviados ao constatar que a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro contra o presidente não derrubou seu capitão. Isso contribuiu para a alta da Bolsa. Mas comigo e com muitos estrangeiros isso não cola. Não sou bolsonarista e não vou comprar ações”, explicou o americano James Gulbrandsen, chefe de investimentos no Brasil da NCH Capital, que gere cerca de R$ 16 bilhões. Ele não tem muito do que reclamar, porque está ganhando dinheiro — até 2 de junho, seu fundo Maracanã rendia 5,9% no ano, ante uma queda de 21% do Ibovespa —, mas aproveita o momento para vender papéis.

A saída dos estrangeiros se dá a despeito do câmbio mais favorável. Em dólares, o Ibovespa caiu cerca de 45% neste ano. A verdade é que, mesmo enxergando oportunidades, os investidores de fora, sobretudo aqueles de longo prazo, preferem manter uma distância de segurança. “Não vemos melhora no Brasil nos fundamentos. Pelo contrário. A agenda de reformas ficou comprometida com a crise institucional, e há o avanço da epidemia no país e os problemas ambientais. Além de tudo, falta ao governo uma estratégia econômica de longo prazo”, disse Daniela da Costa-Bulthuis, responsável pelos investimentos no Brasil e na África da holandesa Robeco, que gere globalmente cerca de R$ 1 trilhão em ativos. “Logo, essa melhora na Bolsa não é sólida. Como veio, pode ir embora”, completou.

As principais ferramentas dos investidores para saber se a Bolsa está cara ou barata são os chamados múltiplos, que comparam a relação entre dois indicadores. O mais usado deles é a razão entre o preço dos papéis e a previsão de lucro das companhias. O problema é que a quarentena embaralhou as cartas, dificultando qualquer projeção embasada na lucratividade. Há muitas perguntas sem respostas. Quanto tempo mais as empresas vão ficar fechadas? Como a quebradeira afetará a cadeia de suprimentos? Como o desemprego afetará a demanda? Em que patamar o dólar estacionará? “Nessa hora, a conta do preço e do lucro futuro não faz muito sentido, e o estrangeiro se apega a outros cálculos”, disse Ronaldo Patah, estrategista de investimentos do UBS Wealth Management.

Uma das alternativas é a razão entre a capitalização da empresa na Bolsa e o valor de seu patrimônio líquido, que está descrito em seu balanço e, portanto, não é influenciado pelas circunstâncias. Em geral, esse múltiplo fica acima de 1. Segundo Patah, no caso do Ibovespa, esse múltiplo estava em 1,3 no fim de março, cerca de 13% abaixo da média dos últimos dez anos. De lá para cá, essa razão já está acima de 1,8, batendo rapidamente a média da última década. Assim como outros estrategistas, Patah preferiu não cravar que a Bolsa está cara, porque, no fim do ano passado, o múltiplo estava em 2,4. “Mas certamente podemos afirmar que não está barata. Dificilmente ela voltará tão cedo ao pico. A situação brasileira é pior do que o restante do mundo, se tornando o epicentro da pandemia e convivendo com uma crise política. Para comprar neste patamar, só se o investidor estiver olhando pelo menos dois anos à frente”, completou.

Mesmo quem acredita que a Bolsa poderá seguir em alta no curto prazo, como José Tovar, sócio fundador da Truxt, que gere R$ 12,5 bilhões em fundos, alerta que, num prazo mais longo, há riscos relevantes. Para ele, o principal é fiscal, porque o governo provavelmente terá de estender a ajuda em dinheiro para os trabalhadores informais. “Há o perigo de que esse gasto extraordinário se torne permanente, algo que o Brasil não teria como pagar”, opinou. Na política, Tovar também vê motivos de preocupação: “O presidente Jair Bolsonaro, em vez de ser um líder, transforma tudo em confronto”.

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