Não há vacina contra o racismo

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Foto: Reprodução

Depois que Donald Trump maldisse os países em desenvolvimento, em 2018, com a desdenhosa expressão “países de merda”, eu escrevi que ninguém viria nos salvar do presidente. Agora, em meio a uma pandemia, vemos exatamente o que isso quer dizer. A economia americana está quebrada. O desemprego continua a crescer. Não há uma liderança federal coerente. O presidente faz piada de qualquer tentativa de criação de um modelo de prevenção possa salvar as vidas de americanos. Mais de 100 mil americanos já morreram em consequência da Covid-19.

Muitos de nós temos estado em alguma forma de isolamento social por mais de dois meses. Os que têm menos sorte continuam a arriscar suas vidas porque não podem se dar ao luxo de se proteger do vírus. Pessoas que já viviam à margem, agora lidam com o estresse financeiro que o pagamento de um “estímulo” pelo ajuda do governo americano (US$1.200) sequer começará a resolver. Uma crise de moradia é iminente. Muitas áreas dos EUA estão reabrindo prematuramente. Manifestantes invadiram as capitais de diversos estados, pedindo a reabertura da economia. O país está obviamente se dividindo entre os que acreditam na ciência e os que não acreditam.

Comerciais produzidos rapidamente nos asseguram que estamos todos juntos nisso. Imagens cuidadosamente escolhidas, com música sentimental, não dizem nada de substancioso. As empresas gastam uma fortuna para fazer assegurar aos consumidores que elas se importam, enquanto se recusam a remunerar seus funcionários. Comerciais celebram trabalhadores essenciais e profissionais de saúde. Comerciais mostram como as corporações se adaptaram ao “modo como vivemos agora”, com serviços de take-away e de entrega sem contato físico, além de drive-thru. Podemos seguir nosso caminho à normalidade, e o capitalismo nos manterá perto, os anúncios nos fazem acreditar.

Algumas pessoas tentam prover a salvação que o governo dos EUA não trará. São iniciativas comunitárias para tudo, do mercadinho do bairro fazendo entregas para os idosos às costureiras produzindo máscaras para os trabalhadores essenciais. Há campanhas online para arrecadar fundos. Compre de uma livraria independente. Peça comida de seu restaurante favorito. Mantenha a sua livraria favorita aberta. Compre vouchers. Pague as pessoas que trabalham para você, mesmo que elas não venham trabalhar. Faça o máximo que puder, e depois faça mais. Essas são ideias adoráveis e demonstram boas intenções, mas não se pode fazer tudo. As desigualdades que normalmente fraturam a cultura americana se tornam mais pronunciadas conforme decidimos, coletivamente, o que escolhemos salvar — o que merece ser salvo.

E mesmo durante uma pandemia, o racismo é pernicioso como sempre. A Covid-19 afeta a comunidade negra de maneira disproporcional, mas sequer podemos parar para refletir sobre isso já que somos lembramos, todo santo dia, que não existe um contexto em que as vidas negras importam.

Breonna Taylor foi assassinada em Louisville, no estado americano do Kentucky, por policiais com ordem de prisão para um homem que sequer morava no prédio de Breonna. Ela tinha 26 anos. Quando os protestos começaram, sete pessoas foram mortas pela polícia. Ahmaud Arbery corria na Geórgia do Sul quando foi perseguido por dois homens brancos armados que suspeitaram que ele tivesse roubado. Os dois alegaram que estavam tentando uma detenção cidadã. Um deles atirou e matou Ahmaud, enquanto uma terceira pessoa filmou tudo. Nenhuma acusação foi feita até que o vídeo foi vazado e a indignação pública exigiu ação. Ahmaud tinha 25 anos.

Em Minneapolis, George Floyd foi imobilizado no chão por um policial que ajoelhou sobre seu pescoço. Ele implorou para que o policial parasse de torturá-lo. Como Eric Garner, ele disse que não conseguia respirar. Outros três policiais olharam e não intervieram. George tinha 46 anos.

Essas vidas negras importaram. Essas pessoas negras eram amadas. São perdas incalculáveis para seus amigos, suas famílias.

Os manifestantes em Minneapolis foram às ruas pors vários duas para protestar contra o assassinato de George Floyd. Trump — que em 2017 disse à polícia para ser dura com presos, implorando a eles que “por favor, não sejam muito legais” — escreveu em um tuíte, “quando as manifestações começam, os tiros começam.” A conta oficial da Casa Branca no Twitter repostou o comentário do presidente americano. O buraco não tem fundo.

Christian Cooper, um ávido observador de pássados, estava no Central Park quando pediu a uma mulher branca, Amy Cooper, para respeitar a lei e colocar a coleira em seu cachorro. Ele começou a filmar, o que deixou a mulher ainda mais furiosa. Ela pegou seu telefone e disse que chamaria a polícia e diria que um homem afro-americano a estava ameaçando. Ela chamou a polícia e sabia o que fazia. Transformou sua branquitude e fragilidade em armas como muitas mulheres brancas fizeram antes dela. Ela começou a soar mais histérica, mesmo que devesse saber que estava potencialmente sentenciando um homem negro à morte por esperar que ela seguisse regras. É um golpe de sorte que Christian Cooper não tenha se tornado mais uma estatística insuportável.

Uma parte infeliz da minha crítica cultural nos últimos 11 ou 12 anos focou na perda sem sentido de vidas negras. Mike Brown. Trayvon Martin. Sandra Bland. Philando Castile. Tamir Rice. Jordan Davis. Atatiana Jefferson. Os nove de Charleston.

Esses nomes são o pior tipo de refrão, uma sobrecarga inescapável. Esses nomes são hashtags, elegias, gritos de guerra. Mesmo assim, nada muda. O racismo é combatido a cada vez que um vídeo que mostra outra atrocidade é divulgado. As pessoas negras compartilham a verdade de suas vidas, e as pessoas brancas tratam essas verdades como exercícios intelectuais. Pessoas brancas se irritam quando o nome “Karen” é usado como referência às mulheres brancas mas não fazem examinam os próprios preconceitos. Elas especulam o que as pessoas negras assassinadas possam ter feito para ter esse destino, como se crimes pressupostos fossem passíveis de punição por morte, sem serem julgados por um júri. Elas exigem a perfeição como preço pela existência negra, sem exigir os mesmos padrões de outros.

Algumas pessoas brancas agem como se existissem dois lados para o racismo, como se os racistas fossem pessoas com quem deveríamos argumentar. Elas têm medo da destruição de propriedade e querem que todos se comportem. Elas se esforçam para entender por que as pessoas negras protestam, mas não oferecem alternativas sobre o que um povo deve fazer com uma vida de raiva, injustiça e ausência de poder.

Quando eu avisei em 2018 que ninguém viria para nos salvar, eu escrevi que estava cansada de mentiras confortáveis. Estou ainda mais exausta agora. Como muitas pessoas negras, estou furiosa e aborrecida, mas isso nao importa.

Eu escrevo seguidamente coisas similares sobre diferentes vidas negras perdidas. Digo a mim mesma que estou farta desse assunto. Mas alguma coisa horrível acontece e sei que preciso dizer algo, mesmo sabendo que as pessoas que verdadeiramente precisam se sensibilizar são insensíveis. Elas não se importam com vidas negras. Elas não se importam com as vidas de ninguém. Nem mesmo usam máscaras para mitigar um vírus para o qual não existe cura.

Eventualmente, os médicos descobrirão uma vacina para a Covid-19, mas as pessoas negras vão continuar a esperar, apesar da futilidade da esperança, por uma cura para o racismo. Viveremos sabendo que, ainda, ninguém virá para nos salvar. o resto do mundo anseia pela volta da normalidade. Para as pessoas negras, normalidade é exatamente aquilo de que queremos estar livres.

Roxane Gay é escritora, crítica cultural e professora visitante na Universidade Yale. No Brasil, teve publicados o ensaio “Má feminista”, a memória “Fome” e os contos “Mulheres Difíceis.

O Globo