Por ideologia e política famílias negam covid19

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Lalo de Almeida

Familiares de pessoas que podem ter morrido de Covid-19 têm contestado a inclusão dos parentes em relatórios de morte pela doença, citando inconsistência nos protocolos, desinformação, medo, disputas políticas locais e discriminação social e levando a revisões de boletins.

Um exemplo é o caso de Francisco Marcondes Ramos, 68, morto em 21 de abril. Submetido a dois testes rápidos para o novo coronavírus quando estava internado e com resultado positivo em ambos, ele ntrou na estatística como o primeiro óbito decorrente da doença em de Guarapuava (PR), 255 km a oeste de Curitiba.

Apesar disso, o velório correu normalmente —sem recomendação para isolamento—, segundo afirmou uma das filhas em rede social. Submetida a testagem, a família do aposentado teve resultado negativo e recebeu, mesmo assim, recomendação de isolamento, disse Eli Cristine Ramos, 24, filha. de Ramos

Em 13 de maio, o município informava em nota oficial que, atendendo à determinação da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná e com base em resultado negativo de teste PCR,

Dois dias depois, o secretário de saúde do município corroborou a inclusão do óbito como Covid, “encerrando a polêmica”, que, no entanto, perdurou ainda três semanas até o desmentido estadual.

Os testes PCR são mais eficazes se as amostras forem colhidas até o 5º dia do início dos sintomas, caindo para 40% de precisão após esse prazo. Na prática, um teste PCR positivo é definitivo, porque mostra que no momento da coleta havia material genético do vírus no nariz ou na garganta. Um resultado negativo não afasta o diagnóstico.

Foi também com base em exame negativo, recebido pouco depois do sepultamento, que a família de Claudionam Nascimento conseguiu, no Pará, autorização para a exumação do corpo e para fazer um velório.

Advogado recém-chegado de Manaus (AM) a Juruti (PA), Claudionam foi internado com sintomas sugestivos de Covid-19. Transferido para Santarém (PA), faleceu em 1 de abril. O funeral, no cemitério de Juruti, foi realizado com a família a distância e o corpo em uma caixa de zinco lacrada.

“Ele era muito querido e gostaríamos de ter feito um velório e um enterro dignos”, afirmou a cunhada Judith Coelho, 48, pedagoga. O segundo enterro aconteceu menos de 24 horas após o primeiro.

No Acre, Francisca Gomes, 73, foi internada com sintomas respiratórios no hospital de Feijó, onde morava. O teste rápido deu negativo. Com a piora dos sintomas, foi transferida para Cruzeiro do Sul, polo regional a 278 km, onde faleceu em 21 de maio.

Impedida de transladar o corpo para Feijó, a neta, com o resultado negativo do teste, contestou a decisão do hospital de encaminhar o caixão para enterro imediato.

O diretor clínico do hospital onde Francisca morreu esclareceu que há um protocolo assinado pelo município com o Ministério da Saúde que determina que não haverá translado de corpos no caso de óbitos pela pandemia. Afirmou que o quadro clínico da paciente era sugestivo da Covid-19, que “um teste rápido negativo, feito há 5 dias, não exclui”.

As diretrizes publicadas pela Anvisa afirmam que testes rápidos (IgM/IgG), de sangue ou plasma, não têm valor diagnóstico (confirmação ou descarte). “Diversos fatores influenciam os testes, tais como a sensibilidade/ especificidade e a condição do paciente (resposta imunológica)”, acrescenta a norma.

Geizimara da Silva Gomes, 21, faleceu em 9 de abril, em Campo Mourão (PR). Era portadora de asma. As timelines de pessoas ligadas à estudante se converteram em campo de batalha. Familiares insurgiam-se contra a “suspeita de Covid-19, que nos tirou o direito de vê-la pela última vez”. Reafirmavam a convicção de que a morte não tinha sido causada pelo novo coronavírus. Dias depois, segundo a família e um blog local, o resultado do exame deu negativo. Procurada, uma irmã da vítima não quis falar com a reportagem.

Wanderson Araújo, 45, morador de Divinópolis (MG), era hipertenso e diabético. Em casa, passou mal na noite de 10 de abril. Conduzido pelo Samu ao hospital, morreu algumas horas depois. Não foi realizada coleta de amostras para exames. Segundo relato do pai, publicado no jornal Estado de Minas, o corpo foi liberado em caixão não-lacrado. O velório, numa comunidade rural, durou quatro horas.

A secretaria de saúde do município afirma que interveio na cerimônia ao ser comunicada pelo hospital do óbito suspeito de Covid-19, informação que não consta da declaração de óbito, reproduzida pelo jornal. A família reitera que somente após o funeral foi contatada e orientada a manter isolamento.

A definição da causa da morte é critério e responsabilidade do médico. O Conselho Federal de Medicina orienta que o profissional se baseie no relato dos sintomas do paciente ou os informados pela família e nos dados de prontuário, “ainda que quadro sindrômico”, o que vale dizer que ao médico é facultado e obrigatório supor e registrar a Covid-19 como causa da condição que ocasionou diretamente a morte, mesmo que sem a confirmação laboratorial, com as observações “aguarda exames” ou “não foi possível coletar exames”.

Em Borrazópolis (PR), uma das filhas de Jorge Araujo, 62, publicou no Facebook uma nota de esclarecimento sobre comentários que circulavam na cidade a respeito da morte do pai, ocorrida em 7 de abril. Queixava-se de que o hospital onde Jorge faleceu, em Apucarana (PR), tivesse divulgado o caso como “suspeita de Covid-19”.

Segundo a filha, o aposentado sofria de diversas comorbidades e o exame fora colhido “apenas como protocolo para casos de pneumonia”. O resultado negativo do teste teria chegado dias após o enterro.

A postagem da filha de Jorge conclui com a frase “residimos em cidade pequena e, além de estarmos vivendo o luto, temos de enfrentar constrangimento, prejulgamento e hostilidade de diversas pessoas”.

“Residimos em cidade pequena e ,além de estarmos vivendo o luto, temos de enfrentar constrangimento, prejulgamento e hostilidade de diversas pessoas”, concluía, de forma idêntica, a nota enviada à imprensa de Roraima pela família de Luiza da Silva, 74, moradora de São Luiz, falecida em 9 de abril, em Boa Vista.

O genro da vítima, Roberto Curió, candidato pelo PPR a vereador nas últimas eleições, declarou ao jornal que “estão usando coronavírus para fazer política”. “Não tem mais roubo, nem acidente, nem nada, só coronavírus. A família está revoltada e vamos tomar providência.”

Em Picos (PI), a causa da morte de Teresa Gonçalves, 79, ocorrido em 18 de abril, também está sendo contestada. A idosa pertencia a uma família de políticos do município. Um dos sobrinhos, Raimundo de Chicá, reivindica “o reteste, com segurança, com toda a vigilância para esclarecer realmente os fatos”, conforme declarou a um jornal de Teresina. “A gente tem certeza absoluta de que não foi coronavírus. Mas, se for o caso, a gente vai à Justiça.”

No Rio Grande do Sul, Nilza Vicente da Silva, 64, moradora de Tramandaí, lutava contra um câncer disseminado e faleceu por insuficiência respiratória em 6 de maio, em hospital de Porto Alegre. O marido, Valdir Indianópolis, candidato a vereador pelo PMDB nas últimas eleições, publicou no Facebook um vídeo em que contesta a inclusão da “suspeita de Covid-19” na declaração de óbito, sugerindo adulteração do documento.

O gerente de internações do hospital onde o óbito ocorreu também veio a público, esclarecendo que “todos os pacientes que evoluem para óbito, mas ainda não têm o resultado do seu exame e são considerados suspeitos, são considerados positivos” e que essa medida se destina a “proteger outros pacientes e familiares”.

Resolução do CFM, em 7 de maio, sobre sigilo médico no escopo da pandemia, reitera a “proibição expressa de divulgação de qualquer documento ou informação médica, por parte do médico ou da instituição de saúde, salvo quando autorizado pelo paciente, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido”. Entre mortos, feridos e enlutados, emoldurada por inconsistências e incertezas de toda ordem, a Covid-19 segue no Brasil sua trágica marcha.

Folha De S. Paulo