Anistia comparou crimes incomparáveis de esquerda e direita
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A anistia geral, ampla e irrestrita —tanto para militantes políticos de esquerda como para os militares— criou a falsa ideia de que esquerda e direita brasileiras cometeram crimes semelhantes durante a ditadura (1964-1985).
Essa foi uma das ideias defendidas nesta quinta-feira (2) por Maria Rita Kehl, jornalista e psicanalista, em live promovida pela Folha sobre o período da ditadura militar. Ela integrou a Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma Rousseff (PT).
Kehl debateu o tema sobre a memória que o brasileiro tem da ditadura ao lado de Maria Bopp, atriz e roteirista.
Sancionada pelo presidente João Batista Figueiredo em agosto de 1979, após uma ampla mobilização social, a Lei da Anistia perdoou infrações consideradas políticas em ambos os lados do espectro ideológico praticadas entre 1961 e 1979.
Mas, para Kehl, acabou colocando no mesmo balaio o que pode ser considerado crime comum e o que pode ser considerado crime de lesa-humanidade, um termo do direito internacional que identifica um ataque a uma sociedade.
Quando atuava na Comissão Nacional da Verdade, Kehl chegou a ser questionada pela população se não haveria também investigações mais profundas sobre a luta armada empreendida pela esquerda, luta esta realizada não só em resistência à ditadura, mas também sob a tutela de teorias marxistas. “Duas vezes na rua me perguntaram: ‘e o lado dos terroristas, vocês não vão investigar?'”, conta.
“Daí eu começava a responder que não eram terroristas, eram pessoas lutando contra a ditadura; e que não precisava investigar, elas tinham sido presas, torturadas e muitas sofreram pena de morte.”
Para Kehl, o trabalho da CNV, realizado tardiamente entre 2012 e 2014 (na Argentina, no Chile e no Uruguai, comissões similares vieram logo após os respectivos regimes), ouriçou a direita, o que foi se tornando mais evidente a partir das manifestações de junho de 2013.
Os protestos foram iniciados por causa da subida de preços dos ônibus em São Paulo, mas acabaram dando voz a diversas insatisfações da população. “E nessas passeatas havia gente com o cartaz pela intervenção militar. Embora tenham sido poucos, já era um sintoma que depois de 28 anos [do fim da ditadura] havia jovens com essa pauta”, diz.
A ascensão de uma direita mais radical no país e a eleição de Bolsonaro, para a psicanalista, estão associadas a essa construção de uma memória que considera distorcida.
“Aqui nós criamos uma anistia geral, ampla e irrestrita, o que causou uma enorme confusão de avaliação: se a anistia foi para os dois lados, quer dizer que os dois lados cometeram um crime. Essa visão se estendeu para os jovens: se anistiaram os dois lados é porque eram dois lados iguais. E não. Um lado era uma ditadura com todo um aparato de Estado e que cometeu crimes de lesa-humanidade, contra outro que estava lutando pela liberdade”, prossegue.
A atriz Maria Bopp, 29, que vem satirizando sua geração por meio de vídeos protagonizados pela personagem Blogueirinha do Fim do Mundo, confirmou a tese de Kehl.
Ela acha que, durante sua formação no ensino médio na década passada, não havia entre amigos a ideia do peso que a ditadura representou na história do país. “Não foi algo que me chocou”, diz, sobre a sensação de ouvir seus professores de história abordarem o tema.
Com a Blogueirinha do Fim do Mundo, ela retrata a alienação de influencers, de jovens formadores de opinião com medo de perder seus patrocínios e público. “Faço uma provocação a essas celebridades da internet e o desinteresse em se posicionar politicamente, o que é um desserviço”, diz.
“Claro que eu sabia que a ditadura era ruim, mas eu ouvia de alguns familiares que a ditadura era boa. Que naquela época o país não era tão violento, que as crianças andavam na rua, tinha essa ideia de que a violência veio depois. Eu não sentia que havia, no meu círculo, essa repulsa [pela ditadura].”
Sua personagem, por outro lado, embarca na virulência que ganhou campo na internet. Nos vídeos, ela se apropria de frases ditas por Bolsonaro ou por ministros do atual governo. “Reproduzo frases muito pesadas do Bolsonaro, como ‘o problema da ditadura foi torturar e não matar’, e quando falo isso com minha cara de Barbie, fazendo uma maquiagem, isso gera um incômodo muito grande”, diz.
Os debates promovidos pela Folha acontecem sempre às 11h, com mediação de Fernanda Mena, repórter do jornal.
Relembrar o regime militar, sobretudo seu aparato repressivo —que torturou e matou opositores, censurou a imprensa, as artes e a educação, e limitou os direitos políticos e sociais dos brasileiros— é fundamental para garantir que tais violações não se repitam, segundo pesquisadores.
Em 2014, a CNV apontou um total de 434 vítimas da ditadura: foram 191 mortos e 210 desaparecidos (e 33 corpos que foram localizados posteriormente).
Passaram-se três décadas entre a Lei da Anistia de 1979 —que perdoou crimes de militantes de esquerda, mas também protegeu agentes de repressão da ditadura— e a instauração da CNV, que apurou os crimes cometidos por agentes do Estado a fim de construir a memória histórica do período.
Kehl é jornalista, psicanalista e escritora, vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura por seu livro “O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões” (ed. Boitempo). Sua dissertação de mestrado, “O Papel da Rede Globo e das Novelas da Globo em Domesticar o Brasil Durante a Ditadura Militar”, embora defendida na área de psicologia social, é referência no setor de comunicação.
Por seu trabalho com jornalismo e direitos humanos, Kehl foi convidada a integrar a CNV em 2012. Na ocasião da entrega do relatório do colegiado, ela recomendou que a Lei da Anistia fosse revista.
A atriz e roteirista Maria Bopp foi protagonista da série “Me Chame de Bruna”, interpretando a prostituta Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha. Bopp viralizou no início deste ano com vídeos em que interpreta a personagem Blogueirinha do Fim do Mundo, que faz críticas ao governo e a influenciadores.
Na live desta quarta-feira (1º), o jornalista Ricardo Kotscho, colunista do UOL, e o chargista da Folha João Montanaro debateram a censura à imprensa durante a ditadura e discutiram como hoje o governo de Jair Bolsonaro provoca a autocensura nos meios de comunicação e artísticos.
A série de lives faz parte de uma campanha em defesa da democracia lançada pela Folha.
No último fim de semana, foi publicado o projeto especial “O que Foi a Ditadura”, com reportagens sobre o período autoritário encerrado em 1985. Também foi lançado um curso online gratuito a respeito do regime.
VEJA A PROGRAMAÇÃO DAS LIVES
Às 11h, com duração de 50 min; a série será transmitida no site da Folha e no canal do jornal no YouTube
QUI, DIA 2
Por que nós, brasileiros, sabemos tão pouco sobre a ditadura?
Maria Rita Kehl
Psicanalista e escritora, integrou a Comissão Nacional da Verdade
Maria Bopp
Atriz e roteirista, faz vídeos em que interpreta a personagem Blogueirinha do Fim do Mundo
SEX, DIA 3
Estamos próximos de um novo regime autoritário?
Flavia Lima
Ombudsman da Folha
Tabata Amaral
Deputada federal (PDT) e colunista da Folha