MPF vai perder poder em acordos de leniência

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Foto: Carlos Alves Moura / Agência O Globo

O governo federal e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, finalizam uma proposta para regulamentar a negociação de acordos de leniência, que funcionam como delações premiadas de empresas. A minuta do projeto, à qual O GLOBO teve acesso, retira o Ministério Público Federal (MPF) das negociações e concentra poderes na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU), órgãos subordinados ao presidente Jair Bolsonaro.

A proposta abre brecha para esvaziar os poderes do MPF em investigações contra empresas. Os grandes acordos de leniência da Operação Lava-Jato, com companhias como o Grupo J&F e a Odebrecht, foram conduzidos inicialmente por procuradores do Ministério Público, para só depois terem a adesão de órgãos como a CGU. Na longa negociação com o MPF, a J&F ofereceu inicialmente R$ 700 milhões, mas, no final, aceitou pagar R$ 10,3 bilhões de ressarcimento.

Pelas novas regras propostas, o MPF não conduzirá mais as negociações dos acordos de leniência. “Visando a incrementar-se a segurança jurídica e o trabalho integrado e coordenado das instituições, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência nos termos da lei nº 12.846, de 2013”, diz o texto.

Isso significa que procuradores responsáveis por investigar os crimes de uma empresa podem ficar fora da análise de quais fatos criminosos essa empresa está confessando no seu acordo.

De acordo com a minuta, qualquer investigação do MPF ou da Polícia Federal que constate o envolvimento de uma empresa em fatos ilícitos deve ser enviada para conhecimento da CGU e da AGU. O texto estipula uma exceção a esse padrão: que o compartilhamento não seja feito caso coloque as investigações em risco. Ainda assim, na avaliação de investigadores, o novo modelo abrirá brecha para que o governo tenha informações de diversas investigações sigilosas em andamento pelo país.

A iniciativa ocorre em meio a uma crise dentro do MPF, deflagrada após iniciativas do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a Lava-Jato. O novo modelo precisa do aval de Aras, que ainda está analisando o assunto. A atual minuta é diferente da proposta inicialmente defendida por ele, que previa também a participação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A minuta é discutida entre CGU, AGU, Ministério da Justiça, STF, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Tribunal de Contas da União (TCU). O assunto já está em estágio adiantado. Trata-se de um “acordo de cooperação técnica” que seria assinado por esses órgãos para garantir que todos sigam os termos estabelecidos. Não é necessário submeter o projeto ao Congresso Nacional.

A proposta cria um “balcão único” na negociação de acordos de leniência. Hoje, uma empresa precisa negociar com diversas instituições diferentes e fica vulnerável a sanções caso não consiga fechar acordo com todas.

Por isso, Toffoli e Aras concordaram que seria necessário desburocratizar o sistema e permitir que uma pessoa jurídica resolva todas suas pendências com apenas um acordo, o que, segundo este entendimento, proporcionaria maior segurança jurídica.

No acordo de leniência, a empresa precisa confessar os crimes cometidos, fornecer provas a respeito deles e se comprometer a ressarcir os cofres públicos. Em troca, fica isenta de punições, como multas ou proibição de fechar contratos com órgãos públicos.

Outro trecho diz que CGU e AGU devem tentar coordenar com o MPF e a PF a negociação de delações premiadas das pessoas físicas envolvidas nos ilícitos, para que sejam feitas em conjunto, mas não explica como poderia haver intercâmbio de informações sobre os diferentes acordos. A “quarta ação operacional” afirma que as provas obtidas serão compartilhadas com o MPF e os outros órgãos competentes somente depois da assinatura do acordo de leniência com a CGU e AGU.

A metodologia para o cálculo do dano ao erário e dos ressarcimentos ficaria a cargo de CGU, AGU e TCU.

A assessoria de Toffoli afirmou que ele não se manifestaria porque o texto ainda está em negociação. AGU e CGU, também responsáveis pela redação final do projeto, não responderam.

Sem participação do MPF nas negociações dos acordos: A CGU e a AGU “conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência” com as empresas, sem previsão de participação do Ministério Público Federal. Poderá haver participação do TCU, caso haja fatos da alçada do tribunal.

Provas só serão compartilhadas após assinatura: Somente após a assinatura do acordo de leniência, CGU e AGU vão compartilhar com os demais integrantes do acordo de cooperação técnica as informações, documentos e demais elementos de prova fornecidos pela empresa.

Acordo pode ser assinado caso TCU não se manifeste: O cálculo do ressarcimento aos cofres públicos será feito por CGU, AGU e TCU. Após a definição do acordo, o TCU terá 90 dias para se manifestar sobre a extinção de processos contra a empresa. Se não houver resposta, o acordo pode ser assinado.

Órgãos tentarão unir leniência com delação premiada: A CGU e a AGU, ao negociar a leniência com uma empresa, buscarão coordenar com o MPF e a Polícia Federal a possibilidade de assinatura de delação premiada pelas pessoas físicas que participaram dos crimes relatados.

A proposta do “balcão único” para os acordos de leniência tem o objetivo de resolver os entraves jurídicos que envolvem esse tipo de negociação e salvar as empresas que são flagradas em casos de corrupção, impedindo-as de quebrar financeiramente.

Esses acordos, criados pela Lei Anticorrupção, de 2013, sempre estiveram envoltos em dificuldades, porque uma empresa precisava fazer diferentes negociações, com vários órgãos, cada um responsável por uma parte do processo de responsabilização.

Foi somente em julho de 2017 que a Controladoria-Geral da União (CGU) conseguiu fechar com a empreiteira UTC seu primeiro acordo de leniência, de ressarcimento de R$ 574 milhões ao erário.

Mas diversos acordos, mesmo após assinados, foram questionados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apontava discordâncias sobre os termos e ameaçava suspender o instrumento.

Para minimizar a insegurança jurídica, a CGU passou a realizar acordos de leniência em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF) e com outras instituições, mas sem um arcabouço legal que regulamentasse essa integração.

A proposta do “balcão único” busca unir todos os órgãos em um único acordo e superar esses entraves.

Por isso, diversos pontos do texto buscam resolver as pendências com o TCU. A minuta estabelece que, durante a negociação, o tribunal deve analisar se é possível extinguir os processos que possui contra a empresa colaboradora e abater deles os valores cobrados no acordo.

Além disso, para evitar que o tribunal trave um acordo, o projeto estabelece que o TCU precisa se manifestar em 90 dias. Caso não responda, AGU e CGU poderão assinar o documento. A minuta deixa aberta a possibilidade de aditar o acordo com um valor adicional correspondente à cobrança feita pelo tribunal.

Isso, porém, deixa a empresa colaboradora vulnerável a novos problemas jurídicos perante o TCU.

“Havendo manifestação do TCU no sentido de considerar que os valores negociados no acordo não satisfazem aos critérios estabelecidos para a quitação do dano por ele estimado, a CGU e a AGU buscarão realizar negociação complementar para eventual ajuste dos valores a título de ressarcimento de danos, não estando impedidas de formalizar o acordo de leniência, sem a quitação no ponto, caso não seja possível alcançar consenso”, diz um trecho do documento.

O Globo