Negacionismo pode virar pesadelo para Bolsonaro

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Foto: AFP / EVARISTO SA

O presidente Jair Bolsonaro pode se aproveitar das operações policiais e processos políticos no Rio de Janeiro, Santa Catarina, Pará e Amazonas, todos relacionadas à área de saúde e ao combate ao coronavírus, para conservar parte do capital político após a pandemia. Mas observadores do cenário político alertam que esta estratégia pode não dar o resultado esperado. O ponto fraco, e que teoricamente anularia parte da manobra de enfraquecimento de adversários, responsabilizando-os pelos desmandos financeiros durante o surto da covid-19, é o comportamento negacionista e o crescimento no número de mortes no país — e tragar parte do capital político do presidente.

As ações policiais combatem fraudes na aquisição de respiradores, e em contratos de hospitais de campanha no Rio de Janeiro; fraude na aquisição de equipamentos de combate ao vírus no Pará e em Santa Catarina; e superfaturamento na compra de respiradores também no Amazonas. Parlamentares desses estados ouvidos pelo Correio destacam a importância de investigar, mas também alertam para o uso político da Polícia Federal. E afirmam que, se em vez de brigar com prefeitos e governadores, Bolsonaro tivesse assumido o combate à crise, estaria forte.

Sociólogo, Cientista Político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Paulo Baía traça um panorama da situação que condiz com a posição dos parlamentares. “A política federal em relação à pandemia foi trágica, mesmo com os contrapontos que existiam quando (Luiz Henrique) Mandetta era ministro da Saúde, e o ministério tinha diretrizes. O presidente e outros setores, como a área econômica, não acompanhavam essas diretrizes. E isso obrigou, pela urgência e pelo medo, que prefeitos e governadores saíssem tomando decisões. E o governo contestou essas decisões, enquanto o STF as validou”, recordou.

Paulo Baía afirma, porém, que mesmo com as operações policiais e os indícios de superfaturamento durante o combate à crise, os possíveis ganhos do presidente podem ser pequenos. “A culpa da crise, creio, será dividida. Está muito presente na memória da população que Bolsonaro não agiu corretamente em relação à pandemia. O fato é que prefeitos e governadores estão próximos da população e receberão sua parcela de responsabilidade. Nenhum governante sairá imune no pós-pandemia. E os primeiros a serem julgados serão os prefeitos, nas eleições de novembro”, avisou.

O Rio de Janeiro é onde a crise do desmando durante a pandemia trouxe os exemplos mais contundentes do descontrole. Sem apoio na Assembléia Legislativa (Alerj), o governador Wilson Witzel (PSC) está em vias de um processo de impeachment, e recorreu ao STF para tentar barrar o julgamento político, sob o argumento de que os deputados estaduais não seguiriam os ritos do processo. A Operação Placebo aponta o governador como chefe em um esquema de fraude, que iria da compra de ventiladores pulmonares ao orçamento das caixas d’água de hospitais de campanha. No primeiro caso, o dano ao erário levou à prisão do ex-secretário de Saúde, Edmar Santos, e do seu substituto direto, o ex-subsecretário Gabriel Neves.

Vice-líder da minoria na Câmara, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) está entre os parlamentares que apontam a falta de uma política nacional de combate ao coronavírus como parte da crise nos estados.

“Somos órfãos de uma política nacional de combate ao coronavírus. A posição que o Brasil ocupa na pandemia é muito por responsabilidade do governo federal”, analisou.

A parlamentar não descarta a possibilidade de irregularidades mesmo na apuração de crimes contra a saúde e o erário nos estados. “As ações da Polícia Federal precisam separar o joio do trigo. Onde há ilegalidade, tem que ser apurado. O que não pode acontecer é transformar isso em confronto político. A situação do governo (do Rio) é gravíssima”, observou a deputada.

A Operação Apnéia, do Ministério Público do Amazonas, está na terceira fase e investiga uma fraude na compra de respiradores sem certificação. A suspeita é de superfaturamento, embora o governo negue. A Secretaria de Saúde do estado comprou 28 respiradores pulmonares a R$ 2,9 milhões, a uma média de mais de R$ 106 mil a unidade –– o dobro do que o governo federal teria gasto com os mesmos produtos. O deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM) aponta falta de experiência do governador do estado, Wilson Miranda Lima, que também é alvo das investigações, agora pela Polícia Federal, em um desdobramento das primeiras apurações.

Ramos destaca que o Amazonas já vivia um período de instabilidade política, e que o governador –– um ex-apresentador de TV –– e assumiu um estado com 4 milhões de moradores e bilhões em reais para administrar. “Mas precisamos considerar que faltou uma coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia. A ação do presidente da República foi de negar, e os governadores ficaram encurralados e acabaram muitos deles fazendo compras que, hoje, estão sendo questionadas. Se de má fé, corrupção ou pelo açodamento da urgência da necessidade, as investigações dirão”, observou.

No Pará, a crise se deu por conta de uma licitação para a compra de garrafas pet para armazenamento de álcool. Foram um milhão de recipientes a pouco mais de R$ 1,7 milhões. A suspeita de superfaturamento levou à renúncia do secretário da Saúde, Alberto Beltrame, que também era presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, e deixou a chefia da organização.

Para o deputado Airton Faleiro (PT-PA), é importante investigar, mas ele alerta para o risco de uso político dessas apurações. “Na minha avaliação, o que originou a briga dos governadores, inclusive governadores que eram base de Bolsonaro, foi a discordância em relação à estratégia do presidente do enfrentamento da pandemia”, afirma.

Ele destaca que se o governador Hélder Barbalho (MDB) seguisse cegamente o presidente, a crise se agravaria ainda mais e, nesse caso sim, Bolsonaro conseguiria se eximir da responsabilidade pelos milhares de mortos.

“O presidente estava equivocado, e os governadores, certos. O combate à corrupção vale em qualquer lugar. O que não vale é tornar a PF uma polícia política. Acho que o presidente escolheu governadores que divergiram e fez operações para desgastá-los”, pontua.

O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), também está em uma posição delicada. Com o número de mortes crescendo no estado, uma CPI da Assembleia Legislativa investiga a compra, por R$ 33 milhões, de respiradores vindos do exterior, e que nunca chegaram. Para completar, ele também responde a um processo de impeachment, aberto em 22 de julho, por crime de responsabilidade. Moisés, a vice-governadora, Daniela Reihner (PSL), e o secretário de Administração, Jorge Eduardo Tasca, concederam aumento salarial a procuradores sem a aprovação dos deputados estaduais.

O deputado federal Pedro Uczai (PT-SC) acredita que essas compras deviam ter sido feitas pelo governo federal, e que Bolsonaro não podia ter se furtado a coordenar a crise. “Infelizmente, o processo de isenção de licitações expôs governos estaduais em compras de equipamentos em um período de pânico no início da pandemia. Era um contexto de profunda preocupação e muitos se precipitaram. Isso tem de ser investigado, claro”, criticou. Uczai acredita que, mesmo já tendo sido mais próximos, Bolsonaro não se furtará de citar a compra dos respiradores em Santa Catarina para culpar o governador e se eximir.

Correio Braziliense