Mandetta critica “binarismo político” no país

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Foto: Reprodução

“Eu não sei onde o Brasil está mais mal avaliado no mundo, se é em saúde ou meio ambiente. Tá duro. Pau a pau”, brinca o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, em entrevista ao Valor. Mandetta, que tem passado a sua quarentena política, imposta pelo Comissão de Ética Pública da Presidência, no Mato Grosso do Sul, conversa informalmente com prefeitos, governadores, setores privados da saúde. Mas não pode ser remunerado, no papel de consultor privilegiado. Somente após o dia 16 de outubro, quando termina sua quarentena – exagerada, na sua opinião -, é que ele lançará seu nome ao mercado.

Mas o que ele quer lançar, de fato, é seu nome como quadro político nacional relevante para a construção de uma “vertente de centro”. Além dos alertas sobre a omissão do Brasil no contexto geopolítico global para negociação da vacina contra a covid-19, e da inexistência de protocolo nacional para a volta às aulas, Mandetta fala da falta de sintonia com Paulo Guedes e outros fatos que viveu no governo, o que relata no livro “Um paciente chamado Brasil: os bastidores da luta contra o coronavírus”.

Valor: Após sua demissão, o país teve dois ministros da saúde. Temos 4,6 milhões de casos, quase 139 mil mortos. O país deu show de ineficiência no combate à pandemia?

Luiz Henrique Mandetta: O país faz movimentos muito erráticos. Trocar ministro tudo bem, é simbólico. Mas trocar a equipe inteira de segundo escalão? Quando você troca todo mundo, perdeu-se o fio condutor, a linha de raciocínio. O movimento foi de distanciamento do enfrentamento [da covid-19]. Neste momento estamos tendo uma discussão sem nenhuma liderança, que é a volta às aulas. Essa é a típica ausência. Não tem nota técnica, não tem “guidelines”. Hoje estamos praticamente com cada cabeça, uma sentença. Cada cidade faz o que faz, cada cidadão entende o que entende, uma mensagem dúbia. Com certeza o Brasil não deu demonstração de liderança ou de inovação no enfrentamento desta pandemia.

Valor: Estamos pagando um preço alto por esses movimentos erráticos, ineficiência de gestão, de liderança nacional?

Mandetta: Tivemos êxito em algumas regiões de conseguir atender a parte hospitalar. São Paulo, por exemplo, não teve desassistência. Manaus experimentou mortes por desassistência, colapso de sistema de saúde, muito cedo, exatamente porque acreditou que em lugares quentes não haveria o vírus, que era vírus do hemisfério Norte. Pagou um preço extremamente amargo. O Rio de Janeiro chegou a bater 380 pessoas na lista de espera de CTI, com hospitais de campanha, com corrupção, aquele problema todo. A gente tem o sul do Brasil mais organizado. As nossas desigualdades vão ficar muito expostas quando a gente fizer a análise de caso a caso da epidemia. “Com certeza o Brasil não deu nenhuma demonstração de liderança ou de inovação no enfrentamento desta pandemia”

Valor: Algum exemplo bem sucedido de gestão?

Mandetta: Acho que todo o sistema de saúde foi estressado. Alguns estavam melhor preparados. O Rio Grande do Sul se preparou muito, porque tem histórico de inverno com muito problema respiratório, então eles não tiveram déficit de leitos, fizeram um plano de zoneamento razoável para bom. Acho que a Bahia, com todos os seus conflitos, conseguiu construir um pacto político ali e atravessar com alguma performance regular. Ceará teve muita dificuldade e não foi bem. Pernambuco, Recife, teve muita dificuldade, índices muito elevados. A gente viu de tudo. O SUS é um tripé, são três pernas para andar: federal, estadual e municipal. O que a gente viu foi uma dessas pernas sair completamente. Primeiro entra nessa crise de direcionamento, que era o Ministério da Saúde x Presidência, que é o que mais retrato no livro. Depois vem a ausência do Ministério da Saúde do SUS, a saída. Nos embrutecemos com os números. Há pessoas que falam pra mim assim: está super bom agora, morriam 1.800 [por dia] e agora estão morrendo só 800. Como se a morte de 800 pessoas de uma mesma doença, num único dia não fossem três Boeings lotados caindo nas nossas cabeças diariamente.

Valor: O senhor citou a volta às aulas, sem diálogo do MEC com a Saúde, e também sem “guideline” de abertura da economia. Aumentam as chances de termos outros picos?

Mandetta: A gente fez um pico muito elevado, que ficou num platô muito elevado por muito tempo, exatamente por inércia de enfrentamento. Ele está caindo por esgotamento de suscetível, os casos com sistema imunológico mais frágil. Vamos conviver com essa doença durante um tempo, até que tenha ou medicamento ou uma vacina. Recentemente teve a posse do presidente do Supremo. Viu quantas pessoas com cargos importantes pegaram? Se aglomerou, nós vamos conviver com aumento de casos. Não tem fórmula mágica.. São Paulo tem 2,7 milhões de estudantes que vão para o transporte público. Vai colocar no mesmo horário do funcionalismo público, do comércio, da construção civil, 7 horas, milhões de crianças e jovens? Claro que na hora que fizer isso depois de duas semanas vai ter novamente a subida da curva.

Valor: Em vários momentos do livro o senhor se questiona sobre o que move Bolsonaro. Cita o cálculo político dele centrado na economia, como se fosse o único caminho possível para ele chegar a 2022. Essa atitude na pandemia foi só cálculo político ou se mistura com a personalidade dele?

Mandetta: Não gosto de concluir maniqueisticamente. Uma pessoa que chega à Presidência da República chega por conta da metodologia política que adotou. Há vários exemplos. Uns chegaram pela insistência, foi candidato uma, duas, três vezes. Outro por circunstância, um plano econômico muito forte deu as condições. Ali [Bolsonaro] é um movimento de internet muito forte, com influência muito grande. E quem pilota essa internet não está necessariamente investido de cargos. Tem um cálculo, tem uma razão de ser, avaliação política. Tudo o que se faz é medido: brigar com a imprensa, brigar com a Globo, criar o inimigo externo, o amigo externo, criar as teorias, tudo isso alimenta um séquito grande de pessoas. A percepção era que saúde é pauta municipal _ a população entende que é tema local, raramente se vê numa eleição presidencial o tema saúde ser central. A situação econômica, empregabilidade e inflação o brasileiro já colocou na conta do governo federal. Acho que foi sim um movimento medido, onde se fez uma escolha. O que me deixou impressionado é que não foi feito sem o alerta. E era uma situação entre se decidir entre vida e perda de vidas. Deixo pra cada um fazer a sua análise.

Valor: O senhor destaca a preocupação do presidente do Banco Central com a covid-19, o que contrasta com os relatos que o senhor faz sobre a postura do ministro da Economia, Paulo Guedes. Como define a atuação e o papel dele?

Mandetta: Ele olhou a pasta da Economia. E quando você está numa situação em que precisa olhar na horizontal, focar só na sua pasta é muito difícil. Seria natural uma proximidade muito grande com o ministro da Saúde, naquele momento, o que não teve. Ele estava muito focado na recuperação econômica, o Brasil tinha perspectiva de crescer 2,5%, pelas projeções dele, e de repente chega uma realidade alheia a qualquer tipo de prognóstico. Pode ter duas reações: entrar dentro daquela realidade e ver como pode transformá-la, ou negá-la. O presidente resolveu negá-la, e usou como argumento a economia. Até que ponto o ministro da Economia influenciou essa posição do presidente eu não saberia lhe dizer. Achei ele sempre muito distante daquela realidade. Vi outros ministros, de pastas não afins, mais dentro disso. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tinha dados, gráficos, estava antenado com Harvard, Princeton. Ele me mandou coisas antes de o Ministério da Saúde perceber. Ele ligava, perguntava sobre os próximos passos. Tinha essa facilidade de decifrar o mundo saúde e economia. Foi uma fase de proximidade. O grande interlocutor da economia comigo, dos inúmeros dados que eu tinha durante a pandemia, sempre foi o Roberto Campos Neto.

“Assisti ao governo Dilma, impeachment, vi o Temer, agora o Bolsonaro. São 10 anos que nós marcamos passo”

Valor: O governador do Rio foi afastado, sofre um processo de impeachment. O senhor esperava um aumento da corrupção na saúde?

Mandetta: Eu tinha preocupação, me reuni com o ministro Moro na época e ele mandou ao Ministério da Saúde o então diretor-geral da Polícia Federal, [Maurício] Valeixo. O que a gente fez foi passar o “follow the money”: esse dinheiro vai sair disso, pode ser gasto nisso. Fiscaliza para qualquer coisa que acontecer a gente pegar cedo. Isso foi feito pelo mês de março. Naquela reunião instrumentalizamos a Polícia Federal. Mas eles fizeram tudo diferente do que imaginávamos.

Valor: Sobre as vacinas, o que o senhor vê com mais otimismo e quais são suas expectativas?

Mandetta: O Brasil não pode resolver o seu problema sem entender o contexto geopolítico. O país sempre foi liderança maior de saúde para a América do Sul e América Central quase inteira. Quando o Brasil se isola e toma uma medida unilateral, ele se esquece do contexto em que está. Na Organização Mundial da Saúde (OMS) no GAV, que trabalha a situação de vacinas imunobiológicas, o Brasil sempre teve voz muito forte. O mundo rico, os Estados Unidos, a Alemanha, sempre trabalhou sozinho. Quando saiu a vacina da H1N1, o mundo rico adquiriu as suas vacinas e falou: olha, vocês esperem para o ano que vem. Teve que haver uma articulação muito grande para garantir aos países em desenvolvimento, mais pobres, o acesso. E o Brasil foi voz extremamente importante para isso. Nesta epidemia agora, o Brasil começa fazendo críticas muito duras à comissão da OMS, dizendo que quer sair da OMS, alinhando seu discurso aos EUA. Isso é preocupante, porque você vai competir com os países de PIB elevado. Ponto. Se eles pagarem mais, o laboratório vai dar prioridade a quem paga mais. Nós fizemos acordos diretos com laboratórios, não sei os termos. Sem liderança única, você perde a capacidade de negociação em bloco. São Paulo fez uma negociação, Paraná fez uma, Bahia fez, o governo federal outra, pela Fiocruz. Uma das forças que a gente tem, o nosso poder de barganha, é exatamente a nossa união para 215 milhões de habitantes através do SUS. O que o Brasil tem de bom: o programa nacional de imunização, uma logística fantástica, que poucos países têm. Se são duas doses, só no Brasil seriam 430 milhões de doses, mais o que você tem de perdas vai a 500 milhões. Acho que a gente vai ter o enigma da produção, depois a logística de distribuição. Vamos ver qual vacina vai chegar primeiro, dessas que o Brasil está testando. Vamos ter que eleger os grupos prioritários, idosos, pessoas com comorbidades, diabéticos, hipertensos.

Valor: Mas o que o senhor quer dizer é que se o Brasil fizesse isso com olhar geopolítico, de maneira mais coordenada, as perspectivas seriam muito melhores?

Mandetta: Não tenha dúvida. Até dentro do Brasil. Pega São Paulo, quase 50 milhões de habitantes. Se você vai fechar com a China, é diferente de fechar para 210 milhões de habitantes. É onde o SUS entra para organizar a escala nacional. Essa falta de coordenação interna e externa me preocupa. Pode ser que a gente pague mais caro e que a gente tenha dificuldade de ter que ficar numa fila.

Valor: Qual é a sua pretensão político eleitoral futura? Uma eventual candidatura do senhor à Presidência seria abraçada pelo DEM? E a aliança DEM-PSDB?

Mandetta: Na última eleição eu já não quis disputar para deputado federal. O resto, tudo é possível: deputado estadual, senador, vice-governador, governador, presidência, vice-presidência. Tem um mundo. E eu também posso me comportar como candidato a nada, ser um cidadão. A única coisa que sei que não quero mais é essa dualidade, essa coisa binária: vote no PT senão o Bolsonaro fica; vote no Bolsonaro senão o PT volta. Isso daí está ruim, está desorganizando o raciocínio político brasileiro. A gente sempre teve um matiz, uma liga social. Ela está rota. Eu espero que esse centro democrático, com várias forças, consiga encontrar um caminho que tenha massa crítica para pensar os reais problemas do Brasil, que não vão se resolver com super heróis, com A ou com B. Mas vai ser a decisão de uma geração de enfrentar isso. Essa doença foi boa para refletir. Quem conseguir refletir vai conseguir entender. Nós vamos continuar tolerando favelas, falta de saneamento, tolerar a falta de investimento em educação de qualidade? Não se paga dívida social sem educação de qualidade. De onde que vai sair essa vertente? O nome que vai ter musculatura para debater? Eu tenho muita pressa para ver esse país sair dessa fase. Eu assisti de perto o governo Dilma, vi impeachment, vi o Temer, agora vi o Bolsonaro. Eu tenho uma pressa danada. Acho que são pelo menos 10 anos que a gente está ali, marcando passo. Eu vou estar ali, dando meus palpites. Meu nome acabou se tornando um nome nacional por uma circunstância. Agora, tem muita gente boa aí que pode fazer esse trabalho. E vai ser da junção, sem vaidades, para construir esse ambiente. Tomara que a gente consiga achar esse caminho.

Valor: O senhor vê o DEM neste centro, ao lado do PSDB? Ou é preliminar?

Mandetta: Acho que as eleições municipais agora vão ser um termômetro muito forte. Essa coisa de não poder ter coligações proporcionais pode mudar o quadro partidário. Acho que 2021 vai ser um ano em que o Brasil vai ter que optar ou pela aventura do gasto público para manter essa bolha de popularidade ou pela responsabilidade fiscal para combater uma inflação que está se avizinhando, nos paquerando. Se em 2020 foi o ano do acontecimento da covid-19, 2021 vai ser o ano das consequências e das escolhas. Acho que ali que a gente vai poder enxergar melhor.

Valor Econômico