Pesquisadores dizem que Volkswagen mantinha “camaradagem” com Ditadura

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Foto: Estadão

Para elaborar o Termo de Ajustamento de Conduta proposto para a Volkswagen do Brasil, os Ministérios Públicos Federal, Estadual e do Trabalho levaram em consideração um relatório de mais de 100 páginas que destaca a ‘camaradagem entre repressão’ e a empresa, além da ‘colaboração’ entre a montadora e a ditadura militar, regime de exceção que perdurou por mais de 20 anos e foi marcado por perseguições, tortura e censura. A pesquisa cita ainda ‘identidade de objetivos ou, talvez mesmo uma proximidade ideológica com os militares’.

O relatório teve como objetivo fornecer insumos para o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo definirem a procedência de alegações de ‘conluio’ entre a Volks e a repressão política, especialmente a polícia política, durante o regime militar. Coordenado por Guaracy Mingardi e datado de setembro de 2017, o documento sobre os fatos investigados envolvendo a empresa foi um dos que basearam o acordo assinado pela Volks nesta quarta, 23, no qual a montadora se compromete a destinar R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores da empresa presos, perseguidos ou torturados durante a ditadura militar (1964-1985) e a iniciativas de promoção de direitos humanos e difusos.

O TAC é um acordo extrajudicial que estabelece obrigações à empresa para que não sejam propostas ações judiciais – no caso, processos que envolveriam a cumplicidade da companhia com os órgãos de repressão da ditadura. O acordo encerrará três inquéritos civis que tramitam na Justiça desde 2015 e se insere no âmbito da Justiça de Transição, que tem o objetivo de garantir a revelação da verdade, a preservação e divulgação da memória e a promoção de garantias de não-recorrência com relação aos fatos da ditadura.

No documento que ajudou a Promotoria e as Procuradorias Federal e do Trabalho a elaborarem o TAC é apontado que a ‘camaradagem entre repressão e Volkswagen’ envolveu não só a colaboração através da troca de informações, mas também repressão ativa da empresa contra funcionários.

Segundo os pesquisadores, em dois momentos tal cooperação teria sido mais intensa, sendo o primeiro deles no começo dos anos 1970, período de ‘caça às bruxas’ onde os órgãos de repressão estavam mais ativos. Já o segundo, teve início do fim da mesma década, 1970, e se estendeu até 1981, quando o objetivo da repressão era fundamentalmente se contrapor ao movimento sindical da época.

No entanto, segundo o relatório, nos períodos intermediários ainda havia um ‘relacionamento especial’ entre o Departamento de Segurança Industrial da empresa e os órgãos de repressão. “Na verdade, como demonstramos, o apoio da Volkswagen ao regime antecede o período mais duro, e vem desde antes do golpe de 1964. Afinal a empresa está na ‘Relação das firmas que colaboraram com a mobilização de Material empreendida em decorrência dos eventos de 31 de março de 1964′”, registra o documento.

A pesquisa fala ainda em uma ‘identidade de objetivos’ ou ‘proximidade ideológica’ com os militares citando os chefes da Segurança Industrial, coronéis Adhemar Rudge e Eugênio Ramos. “Não há como negar que um deles, possivelmente ambos, eram responsáveis pelo contato entre a Volks e a polícia política. E assim sendo a informação sobre seus antecedentes e ideologia leva a crer que a reestruturação do Departamento de Segurança Industrial não ocorreu por
acaso”.

O relatório também indica que assim como tais coronéis saíram das forças armadas diretamente para a Volkswagen, outros oficiais de carreira foram alocados no parque industrial do ABC – ‘sempre no comando da segurança’. “Daí se infere que o regime militar tinha uma estratégia para a região, e nada aconteceu por acaso. O relacionamento especial entre a segurança da Volks e de algumas outras industrias com a polícia política era pré-programado, não foi fruto das circunstâncias ou do acaso. Portanto havia um conluio desde o início entre a Volkswagen e o aparelho repressivo. Os dois militares no comando foram contratados para fazer exatamente o que fizeram, ajudar o aparelho repressivo da ditadura”, frisam os pesquisadores na conclusão do arquivo.

Ao fim do documento, ainda há referência sobre o trabalho da filósofa alemã Hanna Arendt, que criou uma teoria sobre a ‘banalidade do mal’. De acordo com os pesquisadores, a filósofa reflete sobre a ideia de que parte dos eram ‘funcionários levados a agir de forma monstruosa por uma estrutura onde o extermínio de milhões de pessoas era desejado pelo estado’.

“No caso brasileiro esse conceito também pode ser usado, mas não para apagar ou desculpar a morte, prisão ilegal ou a tortura de inúmeros cidadãos, mas para entender como a polícia política e as empresas de montadoras de veículos construíram um sistema de vigilância e repressão. De uma forma burocrática e anódina, sem discutir ideologia, restringiram a liberdade dos trabalhadores e montaram um aparelho repressivo de muitas faces, cada uma delas capaz de se apresentar para a sociedade como legítima. E a Diretoria de Segurança Industrial da Volkswagen foi uma das mais eficientes em manter uma aparência de legitimidade, enquanto agia nas sombras como instrumento da repressão política”, registra o documento.

Outros documentos basearam o TAC assinado entre as autoridades e a Volks, entre eles um relatório encomendado pela própria montadora ao pesquisador independente Christopher Kopper, professor da Universidade de Bielefeld, na Alemanha. O documento, apresentado em 2017, apontou que a empresa foi ‘irrestritamente leal ao governo militar’ no Brasil e ‘e compartilhou os seus objetivos econômicos e de política interna’.

Segundo o pesquisador, até 1979 a Volks mantinha um ‘apoio irrestrito’ à ditadura que não se limitava somente a declarações de lealdade pessoais. Em 1969, foi iniciada uma colaboração entre a segurança industrial da alemã e a polícia política do regime por meio do chefe do departamento de segurança industrial, Ademar Rudge, oficial das Forças Armadas.

“Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria”, apontou Kopper. “Uma vez que não havia obrigação legal de informar sobre manifestações de opinião da oposição, o chefe da segurança industrial, no monitoramento e na denúncia das atividades da oposição do pessoal, agia em responsabilidade própria e com uma lealdade natural ao governo militar”.

Segundo o relatório, as trocas de informações entre o departamento de segurança industrial com o regime militar levou à prisão de, ao menos, sete empregados da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

“Isso ocorreu em uma época na qual a prática de tortura da polícia política já era de conhecimento público na Alemanha e no Brasil”, apontou o pesquisador alemão.

Um dos presos, o operário Lúcio Bellentani, relatou à Comissão Nacional da Verdade (CNV), instaurada pelo governo Dilma Rousseff (PT), que a segurança industrial da Volks não só permitiu sua prisão, como também a tortura. O documento também aponta que até 1980, a Volks do Brasil demitiu empregados por participação em atividades sindicais

Estadão