Dívidas fiscais de igrejas dobram e cobrança cai pela metade

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Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Nos dois primeiros anos do governo do presidente Jair Bolsonaro, a dívida de igrejas e entidades religiosas com a União aumentou 20% e já chega a R$ 1,95 bilhão. Ao mesmo tempo, o número de ações ajuizadas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para cobrar esses tributos caiu 51% no mesmo período em relação aos dois anos anteriores.

Entre janeiro e setembro deste ano (dado mais recente disponível), apenas nove ações contra igrejas foram movidas pelo órgão. A constatação faz parte de um levantamento feito pelo GLOBO com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). A PGFN diz que não houve orientação para reduzir a litigância contra igrejas.

No Brasil, igrejas e associações religiosas têm imunidade tributária e não pagam impostos sobre renda, patrimônio ou serviços como Imposto de Renda, IPTU e IPVA. Apesar disso, essas entidades são cobradas pelo pagamento de contribuições previdenciárias relativas a seus empregados, multas trabalhistas e recolhimento ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) de seus funcionários.

De acordo com a PGFN, que é responsável por cobrar judicialmente esses tributos não pagos, a dívida das igrejas e associações religiosas era de R$ 1,62 bilhão em dezembro de 2018. Em agosto de 2020, esse valor saltou para R$ 1,95 bilhão, num crescimento de 20%. No mesmo período, o número de entidades dessa categoria devendo à União também aumentou, saindo de 10,5 mil e chegando a 11,9 mil, um crescimento de 13%.

Entre as maiores devedoras estão igrejas que já demonstraram apoio ao presidente Bolsonaro, como a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdomiro Santiago, que deve R$ 91 milhões, e a Igreja Renascer em Cristo, dos bispos Sônia e Estevam Hernandes, que deve R$ 33,4 milhões. A Igreja Mundial afirma se pautar pela “legalidade de seus atos” e pela “imunidade tributária” a entidades religiosas. A Renascer não retornou o contato do GLOBO.

Na contramão do crescimento da dívida, o número de ações para recuperar esses tributos vem caindo nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, que se posiciona como aliado sobretudo de igrejas evangélicas.

Entre 2017 e 2018, a PGFN ajuizou 210 ações para executar dívidas fiscais desse tipo de entidade. Em 2019 e nos primeiros nove meses de 2020, esse número diminuiu para 101, uma queda de 51%.

A diminuição já havia sido notada em relação a 2018 e 2019, quando o número de ações saiu de 120 para 92, mas, em 2020, esse valor caiu ainda mais, chegando a apenas nove ações.

Procurada, a PGFN negou qualquer orientação do governo para reduzir a litigância contra igrejas e associações religiosas. “Não há qualquer particularidade sobre o quantitativo de ajuizamentos”, disse o órgão em re

A PGFN disse ainda que o ano de 2020 não poderia ser levado em consideração, porque o governo adotou medidas como a suspensão de cobrança de impostos e tributos que afetaram todos os segmentos da economia.

Os dados, porém, mostram que a queda nas ações contra igrejas e associações religiosas em 2020 foi acima da média em relação a todos os outros setores da economia.

Na média, o número de ações ajuizadas pela PGFN contra devedores de todas as áreas da economia caiu 70,5% entre 2019 e 2020 (considerando apenas os oito primeiros meses do ano) saindo de 28,4 mil ações para 8,4 mil ações. A queda da litigância contra igrejas, no entanto, foi maior, chegando a 90%.

Questionada, a PGFN informou que diversos fatores podem influenciar no volume de ações de execução fiscal ajuizado por ela, e que a queda observada em 2020 “não poderia ser uniforme”, atingindo todos os setores da mesma forma, “uma vez que o ajuizamento ou não de execuções depende da situação de cada um dos 3,1 milhões de devedores pessoas jurídicas inscritos na dívida ativa”. A PGFN ressalta ainda que 80% do valor da dívida das igrejas com a União é alvo de ações de execução fiscal.

Expectativa de perdão
Na avaliação do fundador da organização não-governamental Contas Abertas, Gil Castello Branco, o aumento da dívida das igrejas é resultado da expectativa de anistia por parte de um governo abertamente simpático ao segmento.

— As igrejas têm uma bancada forte no Congresso Nacional e que legisla em causa própria. Como o presidente anunciou bastante a sua simpatia pelo setor evangélico, a expectativa por uma obtenção de privilégio fez com que a dívida aumentasse — disse Castello Branco.

Em julho, a bancada evangélica na Câmara pleiteou a inclusão da imunidade de templos e igrejas na reforma tributária, e criticou “brechas para interpretações da Receita Federal” na legislação atual. Um projeto sobre precatórios aprovado à época na Câmara, com emenda do deputado David Soares (DEM-SP), buscou anular multas antigas aplicadas pela Receita a igrejas.

O deputado, que é filho de R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça, disse na ocasião que era necessário reduzir “autuações que têm inviabilizado” atividades das igrejas. O presidente Jair Bolsonaro vetou a anistia às multas depois que a equipe econômica se manifestou contra à medida, mas disse que, se fosse parlamentar, iria derrubar o próprio veto, que ainda não tem data para ser analisado na Câmara.

Ao abrir em setembro a 75ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro fez um apelo para que o planeta combata a “cristofobia”. O comentário veio um ano após a adesão brasileira à Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa, liderada pelos EUA, que privilegia o combate à discriminação aos cristãos, embora o Brasil seja um Estado laico.

Em evento da Assembleia de Deus Ministério do Belém, na segunda-feira, em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que vai indicar um pastor evangélico ao Supremo Tribunal Federal (STF) em julho do ano que vem, na vaga que será aberta com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello. Bolsonaro foi ovacionado pelos fiéis.

O governo federal pretende abrir o Fundeb, fundo que financia a educação básica, para escolas privadas sem fins lucrativos, incluindo confessionais (vinculadas a igrejas e religiões) e comunitárias. Entidades religiosas têm intensificado a pressão sobre o governo para que escolas confessionais tenham acesso pleno ao fundo de financiamento.

O Globo