Milícias digitais mudam políticas de partidos

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Pixabay/@terimakasih0/Divulgação

Não é novidade que a “temperatura” das redes sociais tem feito mais do que apenas inflamar o debate político do Brasil. Os protestos de 2013 a 2016 e os atos pró e contra o governo atual são exemplos de ações concretas que partiram de discussões em grupos organizados na internet. Agora, as cobranças online têm repercutido até na estrutura interna de partidos políticos, alvos usuais dos brasileiros conectados. É o resultado do chamado “lobby digital”.

Da esquerda à direita, siglas têm cedido à pressão online atualizando bandeiras e até abrindo espaço em suas diretorias para grupos de mobilização na internet. Um exemplo aconteceu no Cidadania, ex-PPS. A “reforma” do partido em 2019, para além das mudanças de nome e cores, se deu no estatuto, que foi reformulado com a ajuda de movimentos de renovação política, como o Agora! e o Livres, com direito a concessão de espaço no diretório nacional a integrantes desses grupos.

A estratégia da sigla é atrair líderes jovens ajustando o programa a pautas ligadas a esses movimentos de forte presença nas redes. “A política mudou de endereço. Estamos mais integrados e conectados. Se você não entende o novo mundo, vai ficar falando sem ter alguém para ouvir”, disse Roberto Freire, presidente do Cidadania. “As pessoas estão começando a participar da política e a se informar e a debater no ambiente online. É aqui que estão surgindo os novos líderes.”

O pesquisador Renard Aron, especialista em relações governamentais, aposta em um poder de lobby cada vez maior por parte do cidadão comum. “A web facilita que a sociedade mostre sua visão para partidos e eles têm se mostrado suscetíveis à pressão popular.”

Aron é autor do livro Lobby Digital – Como o cidadão conectado influencia as decisões do governo e das empresas. “Movimentos globais como o Black Lives Matter, por exemplo, têm feito organizações se posicionarem sobre o tema racismo pela primeira vez, e isso faz a sociedade perceber que tem uma forma de poder”, afirmou Aron.

Outro partido que ouviu o “barulho” das redes é o PTB, que, em 2019, deu uma guinada conservadora, aproveitando o crescimento do bolsonarismo e a onda nacionalista de forte mobilização online. Quem encabeça o movimento é o presidente da sigla, Roberto Jefferson, aliado do presidente Jair Bolsonaro e que se tornou “influenciador”.

Apesar de ter sido banido do Twitter e do Facebook por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) por ataques a integrantes da Corte, Jefferson usa contas alternativas, não oficiais, para se comunicar com eleitores e reforçar que seu partido, agora, tem como prioridades Deus, pátria e família. “Percebemos as aspirações da população (nas redes) e fizemos um estudo profundo para alterarmos o estatuto sem deixar de lado nossas origens”, disse o deputado estadual Campos Machado (SP). “(Ouvir a população) é uma necessidade atual do mundo contemporâneo.”

Crise. Para o cientista político José Álvaro Moisés, da USP, é necessário ter em mente que as mudanças que alguns partidos estão fazendo se insere num contexto de “profunda crise” que as siglas brasileiras vivem desde 2013, com a população expressando desagrado e rejeição à política. “Mesmo o PT, que era considerado um partido de bases, perdeu muitos filiados, algo que também ocorreu com o PSDB e o MDB. Essa crise revela um déficit muito grave da democracia brasileira. As mudanças são uma primeira resposta que alguns tentam dar à crise.”

Aron pondera que o lobby digital nunca poderá substituir o lobby tradicional na política, a influência direta da relação entre indivíduos ou grupos de interesse e políticos. Isso porque trata-se de ações que envolvem atores diferentes. Enquanto um é tradicionalmente feito a quatro paredes, o lobby digital se dá num espaço público virtual. “O lobby digital põe novos agentes no debate público. O cidadão, a celebridade, o youtuber. Por isso é uma mudança de dinâmica”, diz o pesquisador. “Um risco é o esvaziamento do debate, já que essas partes podem ser surpreendidas no debate aberto de temas que não dominem.”

Estadão