STF emitiu dezenas de decisões individuais que barram leis

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Foto: Jorge William / Agência O Globo

Além da crítica de outros poderes, começa a incomodar os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) uma prática que deveria ser exceção: o poder de um único integrante da corte de suspender leis e normas por meio de liminares que, depois, levam anos para serem julgadas em definitivo. Entre os processos que discutem se uma lei federal, estadual ou municipal está de acordo com a Constituição, há no STF 64 decisões tomadas individualmente por um de seus ministros que ainda não passaram pelo crivo do plenário. São determinações consideradas provisórias, tomadas em caráter de urgência e válidas até que todos os ministros decidam de forma conjunta sobre o assunto. Mesmo assim, algumas delas vêm adquirindo aspecto de permanentes, como por exemplo a que vetou a redistribuição dos royalties do petróleo em 2013.

O levantamento foi feito pelo gabinete do ministro do STF Gilmar Mendes entres quatro tipos de ações: as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), as ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs), as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), e as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs). O objetivo foi subsidiar com informações uma proposta de emenda do regimento interno da Corte. Gilmar sugere que essas decisões sejam analisadas pelo plenário do STF, quando todos os ministros vão poder analisar os casos, num prazo de 180 dias. A proposta é feita num momento em que voltou aos holofotes a discussão sobre o grande número de decisões individuais numa Corte em que as decisões mais importantes são tomadas, ou deveriam ser, pelo plenário.

Pelas regras atuais, o julgamento no plenário depende do relator, a quem cabe liberar o caso para análise dos demais ministros. Depois, é preciso que o presidente do STF marque a data.

A liminar mais antiga é uma em que o ministro Marco Aurélio Mello suspendeu em 17 de dezembro de 2010 o trecho de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o pagamento de precatórios, que são dívidas do poder público reconhecidas judicialmente. Ele até tentou levar o caso rapidamente para julgamento no plenário da Corte, mas, em 9 de fevereiro de 2011, o então ministro Ayres Britto pediu mais tempo para analisar a questão, interrompendo a análise da ação. O tempo passou, a própria resolução do CNJ foi substituída por outra, mas o caso segue em aberto no STF.

Entre as decisões que sequer começaram a ser analisadas pelo plenário, a mais antiga é do atual presidente da Corte, ministro Luiz Fux. Em 1º de julho de 2011, ele suspendeu uma resolução do CNJ que regulava o horário de funcionamento dos tribunais. Nesse caso, também já foi editada uma nova resolução no CNJ substituindo a que foi suspensa.

A terceira liminar mais antiga é a dos royalties. Em 18 de março de 2013, a ministra Cármen Lúcia suspendeu trechos de lei aprovada pelo Congresso que aumentaria a receita da maioria dos estados, mas em prejuízo às regiões produtoras de petróleo, como o Rio de Janeiro. O julgamento no plenário está previsto para ocorrer em 3 de dezembro de 2020, mas os governos do Rio e do Espírito Santo tentam um acordo ainda. Em despacho dado no fim do ano passado, a própria Cármen Lúcia chegou a escrever que estava incomodada com a demora.

Em seguida, a liminar mais antiga ainda não analisada no plenário é a que em o então presidente do STF Joaquim Barbosa suspendeu em 18 de julho de 2013 a criação de quatro tribunais federais sediados em Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Manaus. O relator é o ministro Luiz Fux, mas, como o caso chegou durante o recesso da Corte, coube a Barbosa, na condição de presidente, tomar uma decisão. O julgamento do processo chegou a ser marcado para 6 de junho de 2018, mas foi retirado da pauta a pedido de Fux.

Casos de grande repercussão

Entre os casos de grande repercussão que não foram analisados pelo plenário estão:

– a decisão de Dias Toffoli suspendendo em 2015 um trecho da lei do direito de resposta em veículos e comunicação;

– a decisão de Ricardo Lewandowski restabelecendo o serviço de Whatsapp em 2016;

– a decisão de Alexandre Moraes suspendendo em 2019 o acordo firmado entre a Petrobras e procuradores da força-tarefa da Lava-Jato para gerir dinheiro repatriado;

– a decisão de Fux suspendendo em janeiro deste ano a criação do juiz de garantias;

– a decisão de Fux em junho deste ano dizendo que as Forças Armadas não exercem poder moderador em eventual conflito entre os poderes.

São 30 ações questionando normas locais, ou seja de estados e municípios, e 34 nacionais. Do total, 12 começaram a ser apreciadas pelo plenário, mas o julgamento de 11 foi interrompido, e um está atualmente no plenário virtual. A maior parte das liminares não analisadas são dos últimos anos: 19 de 2020, 13 de 2019, oito de 2018 e nove de 2017.

A proposta de reforma regimental apresentada por Gilmar é complementar a outra, de autoria dos ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso, que está pendente de análise. Eles sugeriram que medidas cautelares decididas individualmente e “necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação” devem ser submetidas a referendo do plenário na sessão subsequente.

A proposta de Gilmar estabelece uma regra de transição. As medidas cautelares dadas antes da aprovação da proposta de Toffoli e Barroso deverão ser apreciadas em até 180 dias. Para as cautelares futuras, valerá a regra de analisar na sessão subsequente.

Gilmar fez ainda outra proposta, para mudar a forma de decidir o envio de um inquérito ou ação penal para outra instância. Hoje, isso depende apenas do ministro relator. Mesmo quando a defesa recorre, o relator pode mandar o processo logo para instância inferior. Somente depois, se o colegiado alterar a decisão, é que o caso volta para o STF ou então é encaminhado para outra vara ou tribunal.

Pela proposta do Gilmar, se a defesa apresentar recurso, ele passa a ter efeito suspensivo. Em outras palavras, o processo continua no STF e só é baixado depois de decisão do colegiado. No documento em que apresentou a proposta, o ministro disse que parte das decisões do relator é confirmada, mas outras não são. Segundo ele, isso “causou inúmeros prejuízos às partes recorrentes [investigados], uma vez que após a baixa dos autos o processo tramita normalmente, inclusive com a apresentação e o recebimento de denúncia e a imposição de outras medidas restritivas de direito que são indevidamente publicizadas”.

O gabinete fez um levantamento de processos do tipo, todos de relatoria do ministro Edson Fachin. Em cinco delas, a Segunda Turma mudou a decisão do relator:

– Fachin mandou os trechos da delação da Odebrecht relacionados à refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, para a Justiça Federal de Curitiba, responsável pela Lava-Jato, mas a Segunda Turma determinou o envio do caso para uma vara criminal do Recife;

– Fachin mandou um inquérito do ex-senador Paulo Bauer (PSDB-SC) para a Justiça Federal de São Paulo, mas, após empate por 2 a 2 na Segunda Turma, o caso foi enviado para a Justiça Eleitoral de Santa Catarina;

– Fachin mandou o inquérito do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo e do ex-presidente da Câmara Marco Maia (PT-RS) para a Justiça Federal de Curitiba, onde foram instauradas ações penais, mas, após empate por 2 a 2 na Segunda Turma, houve suspensão das ações até a reanálise do caso;

– Fachin mandou o inquérito que investiga o ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ) para a Justiça Federal de Nova Iguaçu, mas, na Segunda Turma, o próprio Fachin reconsiderou a decisão, tendo em vista decisão do plenário STF sobre a competência da Justiça Eleitoral, e mandou o caso para a Justiça Eleitoral local, sendo acompanhado pelos demais ministros;

– Fachin mandou a ação penal dos ex-deputados federais Mario Negromonte (PP-BA), Luiz Fernando Faria (PP-MG) e José Otávio Germano (PP-RS) para Justiça Federal de Curitiba, mas, por 3 votos a 2, a Segunda Turma mandou o caso para a Justiça Eleitoral do DF.

Liminares por ano:

– 2010: 1

– 2011: 1

– 2013: 2

– 2014: 3

– 2015: 5

– 2016: 3

– 2017: 9

– 2018: 8

– 2019: 13

– 2020: 19

Liminares por gabinete (nem sempre o relator atual foi quem tomou a decisão):

– Luiz Fux: 13

– Gilmar Mendes: 13

– Luís Roberto Barroso: 11

– Alexandre de Moraes: 8

– Ricardo Lewandowski: 6

– Celso de Mello*: 3

– Edson Fachin: 3

– Rosa Weber: 3

– Dias Toffoli: 2

– Cármen Lúcia: 1

– Marco Aurélio Mello: 1

*O ministro já se aposentou e será substituído por Kassio Marques, que tomará posse em 5 de novembro.

O Globo