Unip: aluna vítima de racismo e testemunhas demitidas
Foto: Stenio Freitas para o Intercept Brasil
ESTAVA MARCADO no calendário de Luiz Fernando Mocelin Sperancete: segunda-feira, 17 de agosto, volta às aulas da Unip, a Universidade Paulista, em São Paulo. Professor do curso de Relações Internacionais nos campi Pinheiros e Paraíso/Vergueiro, Sperancete conta que vinha pedindo informações junto a seus supervisores sobre a grade de disciplinas do segundo semestre deste ano desde fins de julho, por e-mails, mensagens de WhatsApp, telegramas e telefonemas.
Além de organizar a ementa da disciplina, atividades e afins, o professor esperava organizar as contas da casa, afinal, remunerado por hora/aula, precisava saber qual seria seu salário estimado. No dia 5 de agosto, ele foi informado, em ligação gravada, que todos os professores da casa teriam a média mínima de 3 horas semanais de aulas, até segunda ordem realizadas pelo Zoom, devido à pandemia de covid-19. Em 21 de agosto, porém, foi surpreendido por uma carta, em envelope com a palavra “confidencial”, que dizia: “aviso prévio”.
História similar aconteceu com Fabio Maldonado, também professor de Relações Internacionais no campus Pinheiros. Ele conta que, em 28 de agosto, onze dias após o início do semestre letivo, uma funcionária da Unip havia telefonado informando que o docente deveria comparecer ao departamento de Recursos Humanos para “assinar uns documentos”. Eram 10h38 e o professor deveria estar lá até as 11h00. Maldonado respondeu que não teria condições de se deslocar por trem e metrô diante da pandemia e pediu que os documentos fossem endereçados à sua casa – não foram, segundo ele. Em 1o de setembro, depois de diversos e-mails e ligações telefônicas para descobrir o teor dos tais documentos, foi finalmente informado: não faria mais parte do quadro docente da Unip.
Demitidos de uma hora para outra, Sperancete e Maldonado atribuem a dispensa a um contexto maior. Eles são testemunhas de uma sindicância interna da universidade que averigua uma denúncia de racismo feita por uma estudante contra o coordenador-geral do curso de Relações Internacionais, Enzo Fiorelli Vasques. “A palavra que define este momento é perseguição”, diz Sperancete.
Em 29 de outubro de 2019, Vasques visitou o campus Pinheiros na condição de coordenador-geral, ciceroneado por Sperancete, coordenador-auxiliar. Os dois entraram em diversas salas para cumprimentar os alunos. Na sala 6, Maldonado ministrava a aula “Relações Internacionais da América Latina”. Ali, após saudar aos estudantes (além de elogiar a “inclusão social” da Unip e agradecer aos pais por pagarem as mensalidades deles “em dia”), Vasques teria se dirigido especificamente a uma estudante na primeira fileira, uma jovem negra de 20 anos. “Gosto muito de vocês, negros, inclusive tenho amigos africanos com esse mesmo ‘tipo’ de cabelo”, teria dito, em tom vexatório, segundo o relato de estudantes e professores.
A estudante, que não quis se identificar por temer represálias, conta que se sentiu constrangida e congelou, sem conseguir reagir ou responder. “[Ele estava] insinuando que esse ‘tipo’ fazia parte de uma cultura exógena ao povo brasileiro. Ou seja, não estava se referindo só ao meu cabelo, mas à minha raça”.
Sperancete e Maldonado contam que se entreolharam, mas tampouco conseguiram reagir na hora – na verdade, admitem que temeram repreender publicamente Vasques, o chefe, a quem estavam subordinados na hierarquia da universidade. Vasques e Sperancete foram embora. “Foi um show de horrores. Todo mundo ficou atônito”, lembra Maldonado. Ele relata que, no intervalo da aula, procurou a aluna e se pôs à disposição se ela quisesse conversar.
Em 13 de agosto de 2020, a estudante decidiu encaminhar uma notificação extrajudicial por e-mail à Ouvidoria, à Reitoria e ao departamento de Recursos Humanos da Unip. No documento, dois outros alunos assinaram a notificação como testemunhas; Sperancete e Maldonado são citados como testemunhas. “Não esperava esse tipo de atitude vindo do coordenador-geral de um curso que tem no nome a palavra ‘relações’, que abrange uma enorme diversidade étnica e cultural no seu corpo discente, além de ter uma ampla carga de disciplinas heterogêneas. Ou seja, a diversidade é o foco deste curso, não o contrário”, diz um trecho da notificação.
Ela relata que decidiu levar o episódio de 2019 à Unip apenas agora pois, devido a mudanças estruturais da universidade, sua turma será realocada para o campus Paraíso/Vergueiro, onde Vasques trabalha, na volta às aulas presenciais (datas indefinidas). Temendo ter contato direto e diário com o docente, ela preferiu se manifestar. Esperava “um posicionamento da faculdade, um maior engajamento na causa racial, o afastamento dele ou uma advertência ou até só um pedido de desculpas”, ela me disse, em entrevista por Zoom, visivelmente abalada por lembrar a história.
Cerca de sete dias depois da notificação, a estudante recebeu um telegrama da universidade, que informava a instalação da Comissão Sindicante 11/2020 para averiguar a denúncia e indicava um link para uma reunião no Zoom, marcada 25 de agosto às 15h.
Participaram do encontro virtual a chefe do campus Pinheiros, Meire Brihy, a coordenadora-auxiliar do curso de Direito no campus Paraíso, Andrea Wild, e o assistente da diretoria do Instituto de Ciências Sociais e Comunicação, Ronaldo Melo – o curso de Relações Internacionais integra este instituto. A estudante entrou na reunião com o advogado Hugo Thomas de Araujo Albuquerque, que a representa.
Segundo Albuquerque, os integrantes da comissão a questionaram insistentemente sobre o motivo pelo qual a estudante se sentiu ofendida por Vasques. “Uma delas [branca] disse que ‘não viu nada demais’ nos fatos relatados”, lembra o advogado. Sentindo-se pressionada, a estudante chorou, segundo seu advogado. “Fiquei nervosa e não sabia como me expressar. Como você explica uma situação de racismo constrangedora como essa para uma pessoa branca?”, indaga a estudante.
Para a historiadora Luciana Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a UFRB, não é responsabilidade de uma jovem estudante ensinar aos docentes por que o comentário do coordenador-geral foi racista. “A abordagem não foi só racista, foi sexista: mulheres são frequentemente destacadas pelas características físicas; mulheres negras, mais ainda. Sala de aula é lugar de aprendizado e acolhimento. O que se está ensinando ao abordar assim uma estudante a partir do corpo, da cor, do cabelo? Que é permitido esse tipo de intimidade? Além de atitude antiprofissional, é assédio. E o que é mais perverso é que a essa altura ainda seja preciso explicar para um professor universitário de um curso de relações internacionais o que é racismo”, analisa.
Segundo Brito, especialista nos estudos sobre escravidão e relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, destacar a aluna tal qual fez o professor significa deslocá-la, tratá-la como alguém “exótico” entre os demais na universidade particular. “A mensagem diz, direta e subliminarmente, que a presença da aluna gera estranhamento. Desloca-a para uma condição de exótico, no sentido de exo-, quer dizer, de fora. Como que para lembrar que ela não pertence àquele lugar de estudo, que aquele lugar não é dela”.
Desde 25 de agosto, Albuquerque afirma que pediu formalmente o arquivo da reunião, que foi gravada. No dia, também pediu que as testemunhas (alunos e professores) fossem ouvidas e que, por representar a estudante, o advogado gostaria de ouvir as oitivas. “Talvez os professores não estejam mais entre nós” foi a resposta de uma das integrantes da comissão, segundo ele. A certo ponto, segundo o advogado, a comissão teria questionado “qual é o papel dos professores nessa história?”
Albuquerque recebeu a ata da reunião quase um mês depois, no dia 24 de setembro. O documento, ao qual o Intercept teve acesso, não é uma transcrição literal da reunião, mas uma narrativa da própria universidade, que contém relato similar ao que advogado e a aluna relatam nesta reportagem. “A Dra. Andréa solicitou a aluna que falasse mais sobre o sentimento [referente ao episódio de outubro de 2019]. Ainda, fez um adendo explicando que o intuito não era desmerecer a reclamação da aluna, até porque estava sendo aberta a sindicância. Mas, ela gostaria que a aluna esclarecesse o que havia chateado a aluna, pois para quem lê ele faz uma alusão aos amigos que usam o cabelo da mesma forma, que não viu uma ofensa direta praticada contra a aluna”, diz um trecho na página 3 da ata da reunião feita pela própria Unip.
“A Dra. Andréa então passa a fazer um resumo de tudo que foi conversado até aquele momento, dizendo que o Dr. Hugo […] fez alguns pedidos, que seja[m] ouvido[s] os professores arrolados no processo e mais duas testemunhas […], que irá analisar para ver a viabilização para deferimentos ou não, pois não sabia até aquele momento, se os professores arrolados ainda faziam parte do quadro de professores […]”, diz outro trecho. Os signatários da ata são Andréa Wild, como presidente da comissão e Meire Brihy e Ronaldo Melo como membros.
Sperancete foi demitido em 21 de agosto, oito dias após a denúncia da estudante. Maldonado descobriu-se demitido em 1o de setembro, seis dias após a primeira oitiva da sindicância. “O que mudou nesse ínterim? A denúncia de racismo. A universidade prefere tentar acobertar um caso para proteger um coordenador, demitindo professores testemunhas?”, me disse Sperancete em conversa por WhatsApp.
Até 24 de setembro, Sperancete e Maldonado dizem que não receberam nenhum e-mail convocando-os para dar depoimento à comissão.
Contratado desde fevereiro de 2018, Sperancete diz que lecionava cerca de 18 horas semanais como professor e cumpria 12 horas como coordenador-auxiliar do curso. Em 12 de agosto, ele afirma ter recebido um telegrama da universidade, que perguntava se ele estava de acordo com a redução de sua carga horária “DE (em letras maiúsculas) 18,67 horas por semana” sem informar “para” quantas horas ao final. O professor relata ter buscado informações junto ao coordenador-geral, à diretoria do Instituto de Ciências Sociais e Comunicação e ao Departamento de Horários – sem resposta.
Demitido sem justa causa, o professor afirma não ter recebido as verbas rescisórias no prazo estipulado pela CLT (dez dias a contar da data do aviso prévio). Até 2 de setembro, diz ter recebido apenas parte da rescisão contratual, ficando de fora a multa de 40% sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o FGTS, e a semestralidade (o salário referente ao semestre, pois foi demitido após o início das aulas). Até 14 de setembro, baixa na carteira, exame médico demissional e liberação de guias para o seguro-desemprego continuavam pendentes. O professor diz que pretende processar a universidade em ações trabalhistas e de direitos autorais.
O direito autoral é outro imbróglio de 2019. Sperancete alega que foi incumbido de um livro-texto para a disciplina “Relações Internacionais Contemporâneas” – e escreveu 234 páginas, ao lado de outro professor, Marcos Antônio Favaro Martins. Entretanto, a universidade não lhe entregou o contrato de cessão de direitos autorais, não informou os valores devidos e publicou o livro-texto, pela editora Sol, no início de 2020. O título já foi distribuído aos alunos do curso de Relações Internacionais na modalidade EaD.
“Apesar de não ter escrito uma palavra sequer do livro-texto, nem mesmo a própria nota biográfica, Vasques me ‘pediu’ para adicionar seu nome entre os autores do livro, pois ele precisava cumprir as três publicações anuais exigidas pela universidade. Não tive escolha a não ser acatar o pedido”, relata Sperancete.
Em conversa acalorada por telefone, Vasques teria dito que os autores não deveriam cobrar nada da Unip, pois outra professora já tinha sido demitida por ter feito demanda semelhante. “Pense bem”, dissera Vasques, segundo relato de Sperancete.
Hoje, o acadêmico relata prejuízos financeiros, profissionais e psicológicos. “Até agora, não me disseram o motivo da demissão. O semestre já começou e quem vai querer contratar a essa altura do ano? Até março de 2021, quando as universidades voltam às aulas de novo, vou fazer o quê?”
Contratado desde agosto de 2019, Maldonado também diz que ficou a ver navios. “Ninguém vai contratar nenhum professor em setembro. Tem o abalo financeiro e o profissional, mas o psicológico é o pior”, diz.
O professor afirma não ter recebido as verbas rescisórias até 15 de setembro, nem FGTS, férias proporcionais ou 13o salário proporcional. “Nenhum centavo. É uma epopeia. Estou pedindo informações por todas as vias possíveis da universidade, mas ninguém responde”.
No primeiro semestre, Maldonado conta que já estava se sentindo sobrecarregado com as atividades adaptadas para o EaD devido à pandemia: além de mensagens do coordenador fora do horário de trabalho (às 5h18 ou 23h17, por exemplo), o professor diz que dava orientações de TCC de alunos e alunas até a meia-noite (00h34 certa vez, para ser exato). Insônia, angústia e ansiedade passaram a marcar seus dias de férias de julho, preocupado com o que esperar de rendimentos para o segundo semestre.
No domingo, 23 de agosto, abalado ao extremo, ele foi a uma clínica psiquiátrica de Indianápolis. Saiu de lá com uma recomendação médica de sete dias de repouso e remédios antidepressivos. Voltando para casa, informou a universidade do afastamento por ordens médicas até o dia 30 de agosto.
Em 1o de setembro, depois de descobrir a demissão, ele afirma ter ficado ainda mais abalado. “É inacreditável, lembra história de filme, queima de arquivo. É como se uma universidade quisesse acobertar um caso de injúria racial e, para ‘eliminar’ as testemunhas, promovesse uma caçada contra os professores”, disse-me Maldonado, em entrevista por Zoom. “Encarava minha missão na universidade como um esforço para estimular o pensamento crítico entre alunos e alunas – pode parecer romântico, mas não é nada fácil diante da máquina de moer professor, que a todo momento nos empurra para fazer não mais do que o necessário e conseguir ter o mínimo de tempo para respirar… E acontece isso?”
Procurados quatro vezes por e-mail, Enzo Fiorelli Vasques, Ronaldo Melo, Meire Brihy e Andrea Wild não retornaram os pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem. Procurada via assessoria de imprensa, a Unip também não se manifestou.