Juristas criticam ataque do governo à Constituição

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Foto: Arquivo/EBC

Líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR) provocou muita controvérsia ao propor uma nova Constituição em meio à pandemia, apenas 32 anos após a promulgação da atual Carta Magna brasileira. Para o parlamentar com seis mandatos no Congresso, a Constituição “só tem direitos” e tornou o Brasil “ingovernável”. Ricardo Barros entende que, assim como o Chile, o Brasil deveria realizar um plebiscito para decidir sobre uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Juristas ouvidos pelo Correio, no entanto, são frontalmente contrários ao posicionamento do parlamentar. Afirmam que uma nova constituinte geraria instabilidade e ressaltam não haver fato que justifique uma nova Carta Magna.

Professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Roberto Dias é categórico: “Não faz o menor sentido convocar uma nova constituinte no momento”. “Não tenho dúvida de que é perigoso e de que é fundamental acompanhar com atenção essas propostas que, na verdade, são propostas para ruptura da ordem constitucional e, provavelmente, como o próprio discurso se mostra, um caminho para redução de direitos”, afirma.

Dias explica que as constituintes são convocadas quando há mudança drástica no sistema, como quando ocorreu o golpe militar de 1964. Na época, o regime impôs uma nova Constituição, em 1967. O fim do regime militar e a redemocratização, por sua vez, significaram uma nova ruptura. Mostrou-se necessário, então, por fim à Constituição sob a égide do autoritarismo e instalar uma Carta democrática.

Segundo o professor, a Constituição Federal pode ser alterada via emendas constitucionais, e é normal que esse processo de aprovação exija um prazo maior de discussão. A ideia é formar um consenso e uma articulação perante a uma efetiva necessidade de mudança. “Ela (a articulação) protege o país contra ímpetos políticos esporádicos”, explica Roberto Dias. Ele alerta que, quando se fala em uma nova Constituição, sugere-se a intenção de excluir as cláusulas pétreas da atual — dispositivos que não podem ser alterados.

As cláusulas pétreas determinam que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais”. “O discurso do deputado líder do governo manifesta, obviamente, que o interesse é retirar direitos, algo que ele não pode fazer por meio de emendas, felizmente”, afirma Dias.

Professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (USP), Elival da Silva Ramos ressalta que “tudo é ‘aprovável’ por emendas”. “Muita coisa já foi aperfeiçoada, emendas importantes. As nossas cláusulas pétreas são simples, que dizem respeito à democracia e a direitos individuais”, frisa. Ele vê um risco ao se propor a convocação de uma constituinte fora de um contexto de crise no sistema democrático, aparentemente querendo mexer em cláusula pétrea e “em um governo com a pecha de autoritarismo”.

“A prática de Bolsonaro enquanto parlamentar sempre foi de muita crítica à democracia e elogios à ditadura. Paira sobre a figura do presidente uma suspeita de não ter muito apreço pela democracia. Então, nessas condições, uma constituinte é um risco imenso, porque você não sabe o que vai sair disso”, relata Silva Ramos. Ele ressalta não ver razão alguma para convocar uma nova constituinte. Além disso, segundo o professor, a discussão paralisaria o país em um momento já de grave crise econômica e social. E, diferentemente da Constituição do Chile, forjada pela ditadura de Augusto Pinochet, a brasileira foi elaborada por uma constituinte que buscou a maior participação social, compara Ramos.

Professor titular de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Luiz Alberto David Araújo afirma que a Constituição brasileira “reestabeleceu direitos que haviam sido perdidos durante um governo autoritário”, por isso, a sua importância. “A Constituição é para ter direitos mesmo. Mas, para cada direito, gera uma obrigação. E eu nunca vi ninguém reclamar que tem muito direito. O que se está querendo é minimizar os direitos que foram conquistados com muita luta”, ressalta.

O constitucionalista lembra que os parlamentares foram eleitos com obrigações e direitos já previstos na Constituição, e que “dizer que quer modificar o rol dessas obrigações, retirando direitos, não foi o ‘combinado’”. “Não conhecia o rol de direitos quando se candidatou? O artigo 5º é uma novidade?”, questiona. Para o professor, é perigoso iniciar o processo de criar uma nova Carta sob a alegação de que a atual contém muitos direitos.

O professor ressalta que a Constituição pode ser alterada via emenda, preservando-se as cláusulas pétreas. “Seria muito importante o parlamentar dizer exatamente qual o desejo dele; quais direitos ele não gosta; quais ele quer tirar”, explica. Araújo frisa que não há nada que justifique uma nova Constituição, e que os ajustes podem ser feitos na atual. Para ele, o governo pode achar mais “fácil” mudar a Constituição do que enfrentar os problemas e os desgastes de temas complicados e decisões difíceis.

“Sociedade sequelada”
Professora de direito constitucional da USP de Ribeirão Preto e do Centro Universitário de Bauru (CEUB), Eliana Franco Neme afirma que a atual Carta é produto de uma “sociedade sequelada”, pós-ditadura, em um contexto de poucos direitos. Assim, o documento buscou dar força ao indivíduo e ‘segurar’ o Estado, algo que a antiga Carta Magna não fazia. “Ela estabelece uma série de direitos mesmo, mas não é que ela não estabeleça deveres. Talvez a nossa sociedade ainda não tenha maturidade para entender alguns deveres. Tem que educar o cidadão, o parlamentar, e não mudar a Constituição”, explica.

A constitucionalista ressalta que alterar a Constituição em um momento de clima tão polarizado, como se vive hoje no Brasil, “seria um horror”, e traria a possibilidade de se gerar mais confusão. “A nossa Constituição, até com os erros dela, foi produto de uma vontade muito grande de acertar, de acomodar a sociedade que estava saindo de um regime militar”, relata.

Eliana Neme explica que os temas presentes na Lei suprema foram alvo de intensos debates. Em casos em que não havia consenso, o constituinte deixou para o legislador definir posteriormente. Ela afirma que os parlamentares, no entanto, são omissos. Segundo ela, até hoje existem artigos que não foram disciplinados, como a normatização de imposto sobre grandes fortunas. “Está na Constituição, mas até hoje ninguém falou nisso. A culpa não é dela”, frisa a jurista.

Assim como os outros especialistas consultados pelo Correio, a docente reforça que os únicos pontos que não podem ser alterados são as cláusulas pétreas. “A própria Constituição nos traz o seu prazo de validade. Quando o constituinte coloca as cláusulas que não podem ser mudadas, ele diz o seguinte: ‘o dia que vocês entenderem que esses princípios não devem mais nortear a nossa sociedade, aí tem que trocar de Constituição. O dia que acharem que o federalismo não é importante, os direitos individuais, a separação de Poderes, aí tem que trocar’. Tecnicamente, ela trouxe no texto dela o indicativo da sua morte”, afirma.

Entrevista
Ricardo Barros (DEPUTADO FEDERAL (pp-pr), LÍDER DO GOVERNO NA CÂMARA)

“Nós já fizemos 120 emendas em 30 anos”
Para o senhor, a Constituição tem muitos direitos, o que torna o Brasil ingovernável. Mas a Carta pode ser alterada por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), com exceção das cláusulas pétreas. O senhor quer mudar alguma delas?
Veja bem, não estou fazendo uma preleção pontual; estou propondo uma reflexão. Não é que eu quero mudar isso ou aquilo. Acho que temos uma Constituição prolixa, com muitos artigos, e, por isso, é que precisa de tanta PEC, porque tudo está na Constituição. Assim, se quer mudar algo, tem que mudar a Constituição (via PEC). Por isso, vejo que a gente devia ter uma Constituição mais enxuta e ter um diploma legal infraconstitucional mais amplo, de modo que a gente pudesse ter mais facilidade de adequar o país às necessidades; ou ao novo contexto mundial de tecnologias; ou aos novos valores, como a gente está vendo aí muitas mudanças dos valores da família; e a questão tributária. A carga tributária no Brasil já está em 35%. Não dá para aumentar mais e a gente não consegue pagar a conta dos direitos que foram estabelecidos. Como a gente vai equilibrar isso? Só nesse momento estou precisando aprovar quatro emendas constitucionais: a reforma administrativa, tributária, o pacto federativo e a PEC Emergencial. É sinal claro que o sistema está esgotado.

Quais direitos atrapalham a governabilidade?
São muito, mas, por exemplo, a estabilidade do servidor, a irredutibilidade do salário, a isonomia, que inviabiliza a meritocracia. Hoje, a maior despesa da nação é com servidores ativos e inativos. A gente paga produtividade para funcionário aposentado. Esse é o Brasil. Se a gente não conseguir alterar essas coisas… Aliás, as reformas são para isso. Lembre-se de que nós votamos agora — foi a primeira votação minha como líder do governo — o veto 17, que congelou os salários dos servidores, progressão, tudo, até 2021. E onde está dizendo que tem que corrigir automaticamente, que tem direito à progressão? A Constituição. Temos que poder nos adaptar. Como diz o ditado: “na natureza, não sobrevivem os mais inteligentes, nem os mais fortes; sobrevivem os que melhor se adaptam”. E a nossa Constituição não nos permite velocidade de adaptação.

Mas, o funcionalismo pode ser alterado via PEC. Sabemos que existe uma resistência por parte do governo. Os políticos não gostam de mexer com o funcionalismo.
Não estou querendo discutir o que gosta ou não; se é bom ou ruim. Sempre é ruim tirar direito de alguém. Mas, não dá para cobrar imposto e não dá para pagar os direitos que estão aí. Qual é a solução? Vamos reformando pontualmente todo ano, de novo e de novo. A nossa reforma previdenciária já foi aprovada e, daqui uns cinco anos, vamos ter que fazer outra reforma, porque essa vai ter esgotado o seu efeito. É preciso que as pessoas tenham consciência de que tudo que a nossa Constituição garante de direitos não é compatível com a capacidade contributiva do contribuinte, do cidadão. Temos uma conta para pagar, mas não temos dinheiro para pagar a conta.

Mas, esse impasse não decorre de uma dificuldade do próprio governo em aprovar as PECs?
Não, não é dificuldade do governo em se articular. O governo vai aprovar as PECs, já aprovou a da Previdência e vai aprovar as demais. Mas, por que, agora, a gente conseguiu aprovar a PEC da Previdência e não conseguiu nos anos anteriores? Porque Rio de Janeiro ficou sem pagar salário; Rio Grande do Sul, também; Minas Gerais ficou sem pagar salário e aposentadoria. As pessoas perceberam: “Poxa vida, esse problema que estão falando existe mesmo”. Porque as pessoas sempre pensam que o problema é dos outros, não é delas, né? Mas, o problema existe para todos. Será que vamos ter que ter as crises, fratura exposta para tomar providência?

O que o senhor propõe, então?
Veja bem, estou propondo só um plebiscito. Quem vai decidir é o povo. O que eu estou dizendo é que eu acho que cabe uma reflexão sobre uma nova Constituição, ou sobre emendar a Constituição. Isso aí é uma coisa que cada um dá a sua opinião. Estou muito feliz com as inúmeras opiniões favoráveis que tenho recebido, e, obviamente, a resistência dos privilegiados, porque sabe que não vai conseguir em uma outra Constituição esse excesso de garantias que conseguiu nessa. E não quero discutir o que tem que mudar, o que não tem que mudar. Está na cara que tem que mudar. Nós já fizemos 120 emendas em 30 anos e precisa de mais algumas urgentes, senão a gente não fecha a conta. A Constituição americana tem 300 anos e 28 emendas. Estamos há seis anos no deficit fiscal primário. O administrador não é incompetente, ele é engessado, não consegue tomar decisão. Tudo está indexado, vinculado. A despesa cresce automaticamente, ninguém está autorizando. A autorização está na Constituição. Se tem ou não tem dinheiro, ninguém quer saber. Está evidente que nós temos que repensar.

O senhor disse que viu muitas manifestações favoráveis, mas também há muitas desfavoráveis. Constitucionalistas argumentam que a discussão gera instabilidade, que não se justifica. E que não é o momento, considerando a pandemia. É a hora ideal para discutir uma nova Constituição?
É só uma questão médica. Você tem que saber quando pode curar com tratamento ou quando precisa de cirurgia. Eu estou achando que a gente precisa de cirurgia, e esses estão achando que um tratamento resolve. Opiniões médicas são divergentes, né. Temos um problema e as pessoas estão tendo visões diferentes de como resolver o problema. É absolutamente natural isso. As pessoas têm opiniões diferentes sobre como resolver um problema que o Brasil está passando. O Brasil está inviável.

Correio Braziliense

 

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