Chanceler “porra-louca” enfrenta inferno astral

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Foto: Luis Echeverria/Reuters

A derrubada do embaixador Fabio Mendes Marzano, indicado ao cargo de delegado permanente do Brasil nas Nações Unidas em Genebra, na Suíça, chega em má hora para o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O revés joga ainda mais pressão sobre a permanência de Araújo no cargo. Ex-aliado do presidente Jair Bolsonaro, o líder do PSL, Major Olímpio (SP), conclamou os senadores a mandarem o chanceler “para o inferno”. E foi atendido.

De 47 senadores na sessão desta terça-feira, 37 aderiram ao chamado contra o indicado do chanceler, vocalizado da tribuna, ao estilo estridente de Olímpio. Somente 9 votaram a favor de Marzano, homem de confiança de Araújo. Um se absteve. A votação é secreta, o que impede saber quem foi favorável ou contrário.

“Peço aos senadores, em nome da altivez do Senado, que não votem nessa indicação. Se o Senado votar com esse cara – é cara -, estamos negando nossa própria existência, o respeito a cada um de nós. Vamos votar contra, o Senado todo. Que se faça outra indicação no começo do ano. ‘Ah, mas eu sou do time do chanceler’. Para o inferno o chanceler!” , bradou Olímpio.

Na véspera, Marzano se indispôs com a senadora Kátia Abreu (PP-TO). Ele se recusou a respondê-la, durante sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, passo prévio à votação no plenário. Kátia queria ouvir as impressões do embaixador sobre a tese corrente entre diplomatas e ruralistas brasileiros: a de que o desmatamento na Amazônia é usado como pretexto pelo agro estrangeiro para barrar o Acordo Mercosul-União Europeia.

Marzano alegou que o tema não era de sua alçada. Kátia protestou. Ela é ex-ministra da Agricultura e ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a quem o tema preocupa. A senadora disse que o Itamaraty virou uma “casa de terrores” e que os diplomatas não podem mais opinar. Os demais senadores tomaram a negativa como sinal de desprezo aos congressistas. “Colocamos nossa posição, não de arrogância, de poder pelo poder, mas de quem respeita o parlamento”, disse a senadora Kátia Abreu (PP-TO), após a reprovação de Marzano, que considerou uma forma de “proteger” o País nas relações internacionais. “Nós sabemos o que estamos fazendo.”

O discurso corporativista do Congresso pode servir como biombo. A rejeição de um indicado diplomático é fato raro e costuma indicar problemas na articulação política do governo – isso às vésperas das eleições internas na Câmara e no Senado. Na sessão de ontem, o senador Cid Gomes (PDT-CE) dizia que queria votar logo a indicação daquele embaixador de Genebra “para ir aquecendo”. Há meses, senadores de trajetórias tão díspares quanto Renan Calheiros (MDB-AL) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP) falavam na necessidade de “enquadrar” a política externa e “reposicionar” o Itamaraty.

Ernesto Araújo sofre cobranças internas no governo e externas. Dois grupos fazem lobby por sua demissão: o agronegócio e os militares. Ambos, por sinal, pilares eleitorais de Bolsonaro. A seu favor, o chanceler conta o apoio da ala ideológica do governo, da militância virtual e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho do presidente que mais interfere na política externa.

O revés no Senado ocorreu horas depois de o Itamaraty e o Planalto serem compelidos a reconhecer publicamente a derrota do aliado Donald Trump, nos Estados Unidos. O republicano tornou-se um dos poucos incumbentes não-reeleitos na Casa Branca. Bolsonaro relutava em parabenizar o democrata Joe Biden como presidente eleito. Mas o fez após o colégio eleitoral confirmar Biden por ampla margem – 306 a 232 votos. O democrata tem uma agenda contrária à de Bolsonaro e já anunciou que irá pressionar o Planalto na política ambiental.

Esse é outro fator a pesar contra Ernesto Araújo. O chanceler tem contatos nos Estados Unidos, onde serviu antes de chegar ao comando do ministério. Ele foi diretor do antigo Departamento de EUA, Canadá e Assuntos Interamericanos do Itamaraty. Saberia como abrir caminhos para construir uma relação com os democratas, mas a principal referência dele em Washington é de ser um “trumpista”.

Foi ele quem, em 2017, escreveu na revista de artigos do Itamaraty um texto enaltecendo Trump como espécie de “líder” e “salvador” do Ocidente. Foi ele quem, neste ano, durante a pandemia do novo coronavírus, emulou críticas da militância trumpista e bolsonarista à China, num texto com o título “Chegou o Comunavírus”. Foi ele quem, em 22 de abril, numa reunião ministerial cujo vídeo viria a público, falou mal do país comunista que controlava boa parte da produção de medicamentos e equipamentos de saúde, além de ter sido o primeiro a registrar a covid-19 – o trecho foi suprimido por causa da sensibilidade a assuntos de Estado.

Incomodado com críticas, Araújo recomendou ao Brasil que assumisse de vez o título de “pária internacional”. Sob seu comando, o governo abandonou a promessa de campanha de uma “diplomacia sem ideologia”. Numa guinada conservadora, Araújo deu palanque a blogueiros bolsonaristas, afastou o Brasil de do histórico de intermediador moderado nos fóruns internacionais e perdeu prestígio na arena ambiental, agenda que ele despreza com o termo “climatismo”. Nas discussões sobre direitos humanos, elevou “Deus” e o cristianismo ao topo das prioridades.

O chanceler nunca teve amplo apoio no Congresso, mas costumava ter certa consideração de parte dos congressistas governistas porque sempre comparecia para se explicar a cada crise diplomática. Agora, sofreu seu pior revés.

A queda de Trump e as rusgas com a China deterioraram as condições políticas para sua permanência. O agronegócio brasileiro depende das importações por parte da China, maior parceiro comercial do País e principal destino da soja, o que preocupa diplomatas e empresários. Ernesto, por duas vezes, repreendeu o embaixador da China, Yang Wanming, e na prática defendeu Eduardo Bolsonaro, em bate-bocas virtuais que constrangeram o meio diplomático em Brasília. A China já ameaçou retaliações.

Além disso, o governo dá sinais de que cargos ministeriais estão em jogo. O Planalto negocia apoios para eleger um presidente da Câmara amigável como sucessor de Rodrigo Maia (DEM-RJ), costumeiro crítico de Araújo.

O governo Bolsonaro passa à história como um dos poucos a ter uma indicação diplomática rejeitada no Senado. Houve outros três casos. Em 2015, num sinal de fragilidade política da presidente Dilma Rousseff, o Senado derrubou o embaixador Guilherme Patriota, então indicado para a Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington. O placar, porém, foi apertado: 38 contra e 37 a favor. Antes, em 1961, o Senado rejeitou um indicado de Jânio Quadros. Era o industrial José Ermínio de Moraes, da Votorantim, que assumiria como embaixador em Bonn, na Alemanha Ocidental. Portanto, também um nome de fora da carreira, assim como ocorreu no governo militar. Em 1984, o general João Batista Figueiredo também sofreu revés: o ex-ministro de Minas e Energia e ex-presidente da Pretrobrás Shigeaki Ueki foi rejeitado para Bruxelas, onde representaria o País perante a então Comunidade Económica Europeia, precursora da União Europeia. A nome era ligado ao também ex-presidente militar Ernesto Geisel. Diplomatas lembram ainda que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) retirou outros nomes ainda durante a tramitação, ao perceber que seria derrotado. Diplomatas lembram ainda que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) retirou outros nomes ainda durante a tramitação, ao perceber que seria derrotado.

O Senado tem por costume chancelar quase automaticamente as indicações diplomáticas feitas pelo governo. Poucos parlamentares dedicam-se a temas de política externa e conhecem de perto os diplomatas. A interpretação deles é que, se as normas forem seguidas, a escolha de embaixador deve ser pessoal do presidente da vez, a quem costuma ser garantida essa liberdade. As sabatinas, geralmente, são protocolares.

Uma exceção foi o anúncio de que pretendia nomear o próprio filho Eduardo embaixador em Washington. O Planalto passou semanas verificando o termômetro para a aprovação e decidiu recuar.

Agora, não percebeu a insatisfação com os rumos da política externa. O caso foi considerado uma reviravolta. Isso porque passou pela comissão com 13 votos favoráveis e nenhum contrário. Só Kátia Abreu discursou contra, mas como já havia votado a favor, não conseguiu voltar atrás.

A derrota surpreendeu o governo e o Itamaraty em geral. Diplomatas em cargos de chefia lamentaram que Marzano tenha sido sacrificado.

Não foi uma rejeição qualquer. Marzano é um quadro respeitado no Itamaraty, tido como bom colega, cordial e com bagagem intelectual. Engenheiro graduado no Instituto Militar de Engenharia (IME), uma das escolas de maior prestígio do País, ingressou no Instituto Rio Branco em 1989, em segundo lugar no concurso. Teve quatro promoções “por merecimento” na carreira, a última delas na gestão de Ernesto Araújo, quando chegou ao cargo de embaixador.

Ocupa desde o início do governo o cargo de secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania. No organograma, é uma espécie de terceiro escalão do Itamaraty. Acima dele, só o secretário-geral das Relações Exteriores, Otávio Brandelli, e o próprio ministro Ernesto Araújo.

No papel, o escopo de sua secretaria é amplo. Abaixo dele, estão os departamentos de Segurança e Justiça, Defesa, Meio Ambiente, Consular, Nações Unidas, entre outros.

Foi também colocado pelo chanceler como chefe da Comissão de Ética do Ministério das Relações Exteriores. É, portanto, um nome da confiança do chanceler e tido entre os colegas como bastante católico. Em Genebra, atuaria principalmente nos debates sobre Direitos Humanos e já havia demonstrado facilidade em encampar o discurso pró-liberdade religiosa, como fez, num aperitivo, no ano passado ao visitar Budapeste, capital da Hungria. É um dos poucos países cujo líder Viktor Orbán, também de direita, remanesce como aliado de Bolsonaro.

Agora, o Itamaraty deverá fazer nova indicação. Questionado na noite de ontem, o ministério não comentou a derrota, nem quem será o substituto.

Consultado pela reportagem minutos depois da derrubada de Marzano, o embaixador Paulo Roberto de Almeida, desafeto de Araújo, quis saber se ele perdera na comissão ou em definitivo no plenário. Informado de que a derrota fora imposta pelo plenário, reagiu assim: “Então está enterrado”. Referia-se, claro, ao embaixador Marzano e não ao ministro, embora não seja segredo que anseie pelo fim da trajetória de Araújo como “chanceler acidental”, como chama pejorativamente.

Estadão 

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