Gilmar diz que suspeição de Moro é “caso encerrado”
Foto: Gabriela Biló/ Estadão
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, avalia que a Operação Lava Jato provocou um “colapso” no Judiciário, atingindo da primeira instância até o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista ao Estadão, Gilmar disse que essas instâncias sucumbiram a “pressões políticas” da força-tarefa que comandou a operação em Curitiba. “O STJ não cumpriu adequadamente seu papel”, afirmou.
Expoente da ala garantista, Gilmar admite que a correção de rumos imposta pelo STF coincide com o momento em que a Lava Jato caiu em desgraça, mas afirma que isso se deve à “estrutura hierárquica do Judiciário”, na qual o Supremo é o último a se manifestar.
O ministro ressalta que o Supremo anulou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por questões meramente processuais, ao concluir que os casos não deveriam ter ficado em Curitiba. O STF não entrou no mérito se o petista cometeu corrupção passiva e lavagem de dinheiro. “Não foi uma absolvição”, observou.
Gilmar já fez duras críticas a posições adotadas pelo novato Kassio Nunes Marques que coincidem com os interesses do presidente Jair Bolsonaro, responsável por sua indicação. Mesmo assim, disse não ver riscos de uma Corte “bolsonarista” e afirmou que os vínculos políticos dos magistrados vão se “esmaecendo com o tempo”.
Confira abaixo a entrevista.
Anular as condenações impostas pela Lava Jato ao ex-presidente Lula legitima o discurso do PT de que ele não praticou corrupção?
Não. O que o tribunal está mandando é para o juiz competente processar e julgar as denúncias. É isso. Não foi uma absolvição. Claro que cancela as condenações, mas manda que o juiz competente prossiga no seu julgamento.
Lula ainda tem um novo encontro marcado com a Justiça?
Com certeza. Você viu que surgiu a dúvida sobre a vara competente – São Paulo ou Distrito Federal. Definida a competência (na próxima quinta-feira, quando o julgamento for retomado no STF), essa vara vai prosseguir (com os trabalhos).
O senhor vê espaço para o plenário do STF dar uma reviravolta na suspeição do Moro ou isso é uma questão já encerrada?
Essa questão está resolvida. Porque, de fato, nós julgamos o habeas corpus (da suspeição de Moro na Segunda Turma). Nós temos que ser rigorosos com as regras processuais. Não podemos fazer casuísmo com o processo, por se tratar de A ou de B. O que é curioso é que eu propus que a matéria fosse afetada ao plenário, na época, em 2018 no início do julgamento. E por três a dois a minha posição ficou vencida. E, agora, a decisão foi tomada. (O relator da Lava Jato, Edson Fachin, no entanto, vai levar a discussão para o plenário na próxima semana).
O julgamento de Lula pode provocar um efeito cascata e beneficiar outros réus?
Não vejo assim. O caso do Lula, no que diz respeito à suspeição, é muito delimitado. É uma situação muito personalista mesmo.
Lula foi condenado, ficou 580 dias preso, acabou afastado da disputa eleitoral de 2018 e apenas na última quinta-feira o plenário do STF decidiu que Curitiba não tinha competência para julgá-lo. O Supremo dormiu no ponto?
Acho que não. Na verdade, o processo judicial como um todo é muito complexo. E ele segue toda essa escala: o juiz de primeiro grau; o tribunal intermediário, no caso deles, o TRF-4; o STJ; e o Supremo. Desde 2015, o STF vem afirmando que a competência de Curitiba não é universal. Talvez o STJ fosse o locus mais adequado para fazer essa revisão. Isso chamou a atenção do ministro Fachin, mas esse habeas corpus (contestando a competência de Curitiba) estava com ele desde novembro de 2020.
Cabe indenização ao ex-presidente, por danos morais?
Não sei se ele vai fazer, mas é uma questão a ser considerada.
Como explicar para a sociedade que o Judiciário cometeu um erro que acabou levando à prisão de uma pessoa?
Isso é fruto, primeiro, dessa estrutura hierárquica do Judiciário. O Supremo só fala por último. Essa questão só, de fato, aportou no Supremo, no caso do Lula, em novembro. Agora, o Supremo, em tese, em outras teses, no caso do “quadrilhão do MDB”, já tinha decisão. O caso da Gleisi (Hoffmann, presidente nacional do PT) e do Paulo Bernardo é um antecedente, de 2015, e ali, se assentaram balizas muito interessantes. Dizendo, por exemplo, que não bastava que um delator informasse vários fatos para justificar a competência de Curitiba. Quer dizer, o mesmo delator poderia ensejar fatos com competências diversas.
Por que as instâncias inferiores não foram na mesma linha?
Havia um pouco de ambiente de mídia opressiva. Uma ânsia de decidir rapidamente. E decidir de acordo com aquilo que a Lava Jato tinha estabelecido. Se nós formos olhar, havia uma certa opressão dos tribunais que eram suscetíveis de serem oprimidos. O STJ, nesse período, também foi submetido a uma pressão político-judicial. Uma perseguição judicial. Por conta daqueles episódios ligados à nomeação do Marcelo Navarro (alvo de acusação feita na delação premiada do ex-senador Delcídio do Amaral). Disso resultou-se em um processo, inquérito, contra o presidente do STJ, ministro Falcão e contra o Marcelo Navarro. O tribunal, ele próprio, perdeu a ossatura. Ele não cumpriu, adequadamente, o seu papel.
O STF impôs uma correção de rumos à Lava Jato?
Claro que a Lava Jato sofreu inúmeras derrotas ao longo desse tempo. Mas por seus próprios méritos. Ou deméritos. Ela causou isso. Na medida em que, por exemplo, eles avançavam sobre competências que não tinham. A pergunta básica é: como que se deu tanto poder a uma força tarefa? Em que lugar do mundo haveria isso? É alguma coisa que precisa ser explicada. Virou um esquadrão.
O senhor utilizou as mensagens de hackers como reforço argumentativo para declarar Moro parcial.
Houve, de alguma forma, um colapso aí, em termos de gestão administrativa. Esses problemas se multiplicam. De alguma forma, estão ocorrendo episódios semelhantes na Sétima Vara de do Rio de Janeiro. Em que aparece um super advogado (Nythalmar Filho, alvo de mandados de busca da Polícia Federal), que teria relacionamento com o juiz (Marcelo Bretas), que teria trânsito com os procuradores, que faziam todas as delações… E tudo mais. Nesse mundo obscuro que é o Rio de Janeiro. O combate à corrupção não pode ser instrumento de corrupção.
No julgamento da suspeição de Moro, o senhor ficou frustrado com o voto de Nunes Marques, que foi contra declarar o ex-juiz parcial?
Eu saio do julgamento, o tema se encerra, e a vida segue com a mesma normalidade. Sou bastante enfático, como vocês sabem. Mas, depois… Posso até ter adversários, não tenho inimigos, não.
O senhor destacou que “não há salvação para o juiz covarde.” O voto dele foi covarde?
Não estava falando sobre isso. Esse é um clássico do direito constitucional e da luta política. É um artigo de Ruy Barbosa, que diz: “O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.” É uma expressão clássica. Estimula-se muito a técnica do não-conhecimento (rejeição de processos por questões técnicas), para evitar enfrentar determinadas questões, especialmente em matéria criminal. Eu sou crítico disso, porque depois nós acabamos por chancelar brutais injustiças.
O senhor foi advogado-geral da União no governo FHC, antes de assumir uma cadeira no STF. Depois da indicação, qual deve ser a relação de um ministro do Supremo com o presidente da República?
Tenho a impressão que esses vínculos políticos vão se esmaecendo com o tempo. É natural e surge até um distanciamento… É claro que eu tenho ainda hoje muitos amigos daquele período, fui assessor do governo FHC desde 1996, fiquei lá até 2002, portanto, anos morando dentro do Palácio. É claro que temos uma relação cordial, de amizade, quando vou a São Paulo e posso, visito o presidente, conversamos sobre rumos e análises de cenário. Eu mesmo, por exemplo, tive relações de cordialidade com o presidente Lula e também tenho uma relação de cordialidade com Bolsonaro.
Bolsonaro riu ao ser informado por um apoiador que uma ação para cobrar o impeachment do ministro Alexandre de Moraes ficou nas mãos de Nunes Marques. Essa bancada bolsonarista que pode se formar dentro do STF não preocupa o senhor?
Acho que não. A vida é tão dinâmica, e as pessoas vão se conscientizando do seu papel. O que acontece é que talvez o momento político está tão crispado e acaba acontecendo que muitos políticos ficam falando para os seus convertidos. ‘Ah, estou atuando nisso’, ‘Tenho controle dessa ou daquela situação’, mas o ministro Kassio simplesmente encaminhou para o arquivo essa matéria. Portanto, aqui não sinaliza nenhuma conexão direta ou subordinação hierárquica ao presidente da República. Ao revés, mostra que simplesmente ele está seguindo a jurisprudência do STF.
Em outras decisões, no entanto, Nunes Marques votou alinhado aos interesses do Planalto.
Essa é uma questão que vocês vão ter sempre de fazer um exame mais profundo. Se nós olharmos no caso do Lula, é um caso interessante, naquele 6 a 5 do habeas corpus (de negar o pedido de Lula para não ser preso, em abril de 2018), tivemos o voto em favor do Lula do Celso de Mello, Marco Aurélio, meu, Lewandowski e Toffoli. Os demais (votos contra Lula) eram todos de (ministros) indicados por governos do PT. Essa vinculação se dissipa.
O senhor não vê risco de um Supremo bolsonarista?
Não vejo, acho que as pessoas (os ministros indicados) começam a fazer uma crítica e uma autocrítica também do seu papel.
O senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) divulgou um áudio de uma conversa reservada mantida com Bolsonaro. O senhor vê algum tipo de crime nesse tipo de conduta?
Tudo isso é muito estranho, eu preferia aguardar mais desdobramentos disso. De fato, a gente tem de resguardar a figura do presidente da República. A impressão que ficou é que um órgão que detém um tipo de soberania está muito vulnerável. São condutas que devem ser evitadas. Eu acho que a gente tem de trabalhar para a melhoria da qualidade da política. A interdição do debate público e a criminalização da política estimularam muitos aventureiros, que hoje compõem bancadas no Congresso, mas que não têm sequer cultura política parlamentar. Espero que esses aventureiros não renovem mandato.
Especialistas viram crime no conteúdo da fala do presidente, uma vez que ele orienta o senador a partir para cima de ministro do STF para segurar a CPI.
Quanto ao impeachment, os ministros do STF veem com muita naturalidade. Como vocês acompanham, são pedidos feitos por grupos contrariados com uma decisão, como aquela do ministro Alexandre em relação a esse deputado Daniel Silveira (parlamentar bolsonarista que acabou preso, após fazer apologia ao AI-5 e insultar o STF), que já não é mais uma decisão do ministro Alexandre, ela foi referendada pelo plenário. Por que então pedir o impeachment só do ministro Alexandre, né? Cada vez que um de nós tomar uma decisão, vai ficar suscetível a esse tipo de ameaça? Portanto, é uma questão de cultura política.
O senhor não vê espaço nem para impeachment do presidente, nem para o de ministros do STF?
Não vejo. Estamos em meio a uma pandemia, com problemas os mais diversos, eu tenho propugnado para que a gente busque um consenso no sentido de encaminharmos bem, cada um com suas responsabilidades. Não entendo que devêssemos banalizar o impeachment de presidente da República.
A Lei de Segurança Nacional é uma herança maldita da ditadura militar?
Leis de ditadura nós temos muitas. O próprio Código Penal e o Código de Processo Penal são de uma ditadura hoje considerada mais soft, do Estado Novo, período Vargas. Não é isso que deve nos balizar para analisar a questão. Tenho a impressão de que temos de olhar com muito cuidado. Mas eu torço para que, de fato, haja a substituição da Lei de Segurança Nacional. Que o Congresso faça um novo projeto de lei, e a previsão expressa de uma lei de defesa do estado democrático direito. Corre-se sempre o risco de você afirmar que algo não foi recepcionado (pela Constituição) e produzirmos lacunas em tipos (penais) que talvez sejam importantes. Por isso temos de nos movimentar com muito cuidado.
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