Confira quantas crianças a polícia já matou
Foto: Reprodução/ Internet
Há uma semana, no dia 6 de maio, a favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, amanheceu ao som de tiros, disparados assim que a Polícia Civil entrou na comunidade para cumprir mandados de prisão. A ação policial mais letal da história do estado deixou 28 mortos — entre eles, o inspetor André Frias.
Apenas quatro dos mortos eram alvos dos mandados de prisão expedidos pela Justiça. Outros três foram presos, segundo a polícia. Mas a corporação assegura que os 27 mortos tinham registro em suas fichas criminais ou envolvimento com o crime e que estavam fortemente armados.
Em meio às desoladoras estatísticas de mortes na guerra instaurada no Rio contra o tráfico ficam mulheres, mães e filhas que, além da tragédia em si, são julgadas e apontadas como culpadas também por todo esse cenário.
Universa conversou com quatro mães que tiveram seus filhos mortos em ações policiais. Todas pretas, moradoras de comunidades: Acari e Manguinhos, no Rio, e de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Elas contam como convivem com essa dor e apontam caminhos menos letais para o combate à criminalidade, seja na favela ou no asfalto.
“Não dá para descrever a dor de perder um filho; é fora da curva”
“Quando começaram a passar aquelas imagens do Jacarezinho foi angustiante demais, porque a gente revive tudo de novo.
Me pergunto se essas pessoas não têm sentimentos, nem filhos.
Meu filho era muito sonhador, amava animais. Momentos antes de ser assassinado, ele tinha passado na casa da minha mãe e brincou com o cachorro dela. Era muito alegre. Estava namorando e uma das últimas coisas que ele falou foi ‘vou noivar’.
São sete anos do assassinato do meu filho completos nesta sexta (14) e há três aguardo que marquem a data do júri popular do policial que matou meu filho. Enquanto isso, ele segue solto, diferente de quando um suspeito é pego dentro da favela. Esse fica preso esperando a investigação.
A 5ª Câmara Criminal decidiu, em 2018, submeter o PM Alessandro Marcelino de Souza, acusado de ter feito o disparo que matou Johnatha, a júri popular
Independentemente de matarem a pessoa que trabalha no varejo das drogas ou um estudante dentro da favela, sempre usam a mesma justificativa: que estavam em confronto. E existe uma sociedade que apoia essa ação letal da polícia. Isso me dá muita revolta
Moro na comunidade há 44 anos e cresci vendo operações policiais. Nada mudou. A pergunta que não quer calar é: como essas armas e drogas vêm parar dentro das favelas? O governo sabe a resposta.
O nosso sangue derramado, as nossas lágrimas e o sofrimento geram muito dinheiro para as pessoas. A favela paga o preço pela ganância instalada nessa cidade
Só fui saber quem era o assassino do meu filho dez meses depois, na primeira audiência no Tribunal de Justiça, porque as testemunhas apontaram para mim o policial. Para minha terrível surpresa, o vi trabalhando na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) como se nada tivesse acontecido. Um policial que já foi acusado de envolvimento em outros homicídios e chegou a ficar preso. Se ele tivesse respondido por esses outros crimes, provavelmente meu filho estaria vivo.
Hoje falo para minha filha de 15 anos que é necessária essa luta para que ela, como mulher preta, tenha o direito a conviver com seu filho quando for mãe. Porque perder um filho não dá para descrever. É fora da curva.
O que traria resultado para toda a sociedade é pegar o dinheiro que se gasta em operações, com blindados, e investir em educação, saúde e lazer. Não é mimimi quando a gente fala que na favela não tem oportunidade.”
Ana Paula Gomes de Oliveira, 44, mãe de Johnatha, morto aos 19 com um tiro nas costas após ação policial em Manguinhos, no Rio, em 2014
“Ela disse que iria longe, seria veterinária. Mataram o sonho dela”
“É difícil ver confrontos como o do Jacarezinho, porque vem tudo à mente. Quantas crianças morreram depois da minha filha e fica por isso mesmo? Os que mataram minha filha estão soltos.
Em 2020, a Justiça condenou o Estado a pagar indenização de R$ 1 milhão, por danos morais, à família da adolescente. Já o cabo Fábio de Barros Dias e o sargento David Gomes Centeno, que respondem na Justiça pelo homicídio da garota, seguem na PM
O Estado tem que ensinar os homens dele a entrar em comunidade. Olha quanta criança eles vêm matando. Entram atirando, arrebentando porta e tirando vida. São covardes. Minha filha não foi a última
Mas sou cristã e perdoei os policiais. Só queria um dia perguntar o que eles fariam se estivessem no meu lugar. Eles não vieram matar a Maria Eduarda, mas foram imprudentes, porque tinha um colégio no meio do caminho.
Depois que tudo aconteceu, tive problema de saúde. A pressão subiu e perdi uma visão. Também tenho problema no coração. Os medicamentos são caros. Estou desempregada e não tenho recurso. Recebo Bolsa Família de R$ 98. Também aluguei o apartamento onde a gente morava para ter uma renda e fiz uma casinha ao lado da igreja que frequento.
Ninguém me procurou para ajudar. Só tenho apoio de Jesus e de uma criança que cuido, de cinco anos, filho de um irmão usuário de drogas. Foi a Duda [como Maria Eduarda era chamada] que pegou esse menino para cuidar, quando ele tinha 14 dias.
Ele entende tudo. Quando vê polícia na rua, fala: ‘Olha, mamãe, a polícia que matou a Maria’
Eu criei a Duda sozinha e na nossa última conversa ela pediu para o pai jantar conosco. Ali na mesa chorei pedindo para ele tirá-la dali porque estava muito perigoso. E ele falou: ‘Deixa minha filha que ela está bem’. Uma semana depois ela tomou quatro tiros.
Minha filha falou que ia longe, jogaria basquete e seria veterinária ou aeromoça. E mataram o sonho dela
Rosilene Alves Ferreira, 56, mãe de Maria Eduarda, morta aos 13 no colégio onde estudava na comunidade de Acari, no Rio, em ação policial em 2017
“Queremos os filhos por perto, mesmo que seja na prisão”
“Meu filho tinha passagem pelo sistema prisional [por assalto à mão armada]. Sempre lutei para ele sair daquela vida. Ele falava que queria trabalhar, formar família. Na última vez que saiu da cadeia estava com vários planos. A gente trabalhava como camelô, ele estava tirando o dinheiro dele. Tinha apenas 15 dias que ele saiu da prisão antes de morrer.
Ele foi asfixiado até a morte por policiais, mas colocam tudo de ruim num morto como ele. Falaram poucas horas depois que ele tinha passagem por tráfico, mas ele não mexia com drogas. Também ouvi que ele correu da abordagem, bateu a cabeça e morreu. Mas o laudo apontou que a causa da morte foi por asfixia mecânica
Por causa do passado dele, foi difícil para o caso ser aceito na Justiça. Mas os policiais envolvidos foram condenados.
Cinco PMs foram condenados por lesão corporal seguida de morte a três anos de prisão em regime aberto e três foram condenados a dois anos, com direito a suspensão da pena.
É raro uma mãe que tem o filho no sistema prisional ver a condenação de quem o matou. Se fosse o contrário, ele teria pegado 30 anos de cadeia. As pessoas dão legalidade à morte de quem tem passagem pela polícia. Independentemente disso, todo mundo tem direito de acertar na vida.
Já senti culpa pelo que aconteceu, mas hoje entendo que foi o Estado que tirou meu filho. Eduquei ele como pude, e infelizmente ele fez coisa errada. As mães não têm culpa do envolvimento dos filhos [com o crime]. Elas querem ter eles por perto, mesmo que seja no sistema prisional.
O que pode acabar com a criminalidade é a oportunidade, são mais ações dentro da favela, nas escolas. Favela tem potência. Muitos artistas saíram dela. Se dessem oportunidade, não veríamos tanto homem na laje com arma.
Armas e drogas não são fabricadas na favela. Alguém de terno e gravata traz para eles.
Nunca me procuraram nem para um pedido de desculpa. Hoje conto com ajuda das amigas e de grupos de mulheres que passaram pelo mesmo que eu. A gente se dá suporte, senão não aguenta. Fazem de tudo para nos desanimar.
Tenho um salãozinho que está fechado e conto com cesta básica, auxílio emergencial e Bolsa Família. Tive dez filhos, e hoje eles têm entre 1 e 31 anos. — cinco moram comigo e o pai ajuda como dá.
Fátima Pinho, 47, mãe de Paulo Roberto, morto aos 18 após abordagem de policiais da Unidade de Polícia Pacificadora de Manguinhos, no Rio, em 2013
“Pensei no desespero do meu filho ao vê-lo morto, pelado”
“Tenho as melhores lembranças do meu filho. Era um garoto bobo, carinhoso, que sempre falava que amava todo mundo.
Quando vi as imagens [da abordagem policial], imaginava que ele estava tranquilo, sentado, respondendo a tudo. Deve ter pensado: ‘poxa, tenho 17 anos, minha mãe vai me tirar daqui’.
E penso no desespero quando viu que não ia voltar para casa. Não foi legal ter encontrado meu filho morto, pelado. Pensei em tanta coisa…
Acho que alguns policiais têm a preocupação de levar preso, outros pensam: ‘vai ser só mais um. Amanhã vira estatística’
E ninguém te procura para falar: ‘a gente sente a sua dor’. Faz cinco meses que não vejo meu filho e tenho que ter força para acordar porque tenho mais uma filha de 12 anos para criar.
Os policiais estão presos, mas ainda não teve julgamento, enquanto no caso do vereador Jairinho [acusado de ter matado o enteado, Henry], com pessoas ricas e famosas, o inquérito foi concluído bem mais rápido.
Os dois PMs foram presos após a divulgação de vídeo mostrando a abordagem e, em fevereiro, a Justiça do Rio aceitou a denúncia do Ministério Público. Eles vão responder por duas acusações de homicídio qualificado
A gente é classificada pela classe social e pela cor da pele. Se fossem dois meninos brancos no Leblon, não seriam presos nem encontrados mortos no outro dia
Estou sempre tentando preencher o vazio que tem dentro de mim. Quando chego em casa sofro meu luto. Quando saio para trabalhar, coloco minha dor na caixinha e visto minha armadura. Tenho que rir porque as pessoas não entendem que você está sofrendo.”
Alexandra Santana, 39, mãe de Jhordan Luiz, morto aos 17 junto com o amigo Edson Arguinez Júnior, 20, após abordagem policial em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, em dezembro de 2020
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