FHC diz que Brasil naturalizou a injustiça social
Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
Em entrevista sobre seu novo livro de memórias, Fernando Henrique Cardoso analisa o impacto da formação acadêmica em sua carreira política e afirma que Brasil se acomodou diante da pobreza e da desigualdade, que não há avanços sociais sem luta por parte dos excluídos, que as instituições seguem funcionando a despeito de eventuais turbulências e que Bolsonaro não tem o propósito de instalar uma ditadura no país.
Nas páginas iniciais de seu novo livro de memórias, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dedica algumas linhas à babá que cuidou dele na infância. Alzira era filha de uma ex-escrava de seu bisavô materno, ele conta, e viveu próxima da família por muitos anos como agregada, assim como sua mãe.
“De pequeno, e mesmo já grandote, eu não calçava meias nem sapatos: esticava as pernas e ela os punha”, escreve FHC. “Se perdi esses maus hábitos, eu devo isso à minha mãe e, mais tarde, à minha primeira mulher, Ruth. Se hoje não guardo esses costumes senhoriais, foi pela boa educação que delas recebi.”
Em “Um Intelectual na Política”, que chega às livrarias nesta sexta-feira (14), o ex-presidente revisita suas origens familiares e sua formação acadêmica para discutir os efeitos que produziram em sua atuação na política e nos dois mandatos que exerceu como presidente da República, de 1995 a 2002.
Ele cita a empregada da família uma segunda vez perto do fim do volume, em um parágrafo em que também são lembrados o sociólogo Florestan Fernandes, o professor que mais o influenciou na USP, e o deputado Ulysses Guimarães, que liderou o antigo PMDB na oposição à ditadura militar (1964-1985).
“São pessoas que todos conhecem”, diz Fernando Henrique, que completará 90 anos em 18 de junho. “Mas existem aquelas que ninguém conhece que também tiveram muita importância.” Alzira entrou no livro como coadjuvante, mas saiu como símbolo dos que acompanharam à margem a trajetória do seu autor.
Professor de sociologia na USP até ser aposentado pelo regime militar, FHC dedicou seus primeiros estudos acadêmicos à escravidão e às cicatrizes que ela deixou na sociedade brasileira. Exilado e trabalhando na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da Organização das Nações Unidas, apontou a integração com as economias mais avançadas como caminho para o desenvolvimento do Brasil e de seus vizinhos.
Nesta entrevista, em que discute os principais temas do novo livro, o ex-presidente afirma que o Brasil não soube aproveitar as chances oferecidas pela globalização tão bem quanto outras nações, como a China, e lamenta que o país tenha se acomodado diante dos elevados índices de pobreza e desigualdade que marcam a sociedade brasileira.
Revendo o seu percurso no livro, é fácil perceber como sua obra acadêmica iluminou o entendimento de alguns problemas do país e orientou sua ação política no passado. De que forma ela ainda pode contribuir para enfrentar os problemas do presente? Nunca perdi meus laços com a academia. Minha formação sempre me obrigou a ter uma certa objetividade, o que me ajudou na política, mas também atrapalhou. Na política, é preciso mergulhar de cabeça. E tenho dificuldade de mergulhar, porque fico pensando nas alternativas e no que está errado.
O mundo mudou, obviamente. Nasci em 1931, em um país que era basicamente rural. Mudei do Rio para São Paulo em 1940. Foi um choque para mim. São Paulo já era uma cidade industrial, mas você olhava em volta e as ruas não tinham calçamento. Uma coisa que eu nunca tinha visto no Rio.
O Brasil tinha crença nesses anos, e o que talvez nos falte hoje é acreditar no futuro. Somos agora um país integrado ao mundo. Temos, portanto, os problemas do mundo, além dos decorrentes do nosso atraso. Não é fácil. Nossa política reflete um pouco essa dualidade que há no país.
Hoje temos um presidente que não parece sofisticado, mas ele capta um pouco essa vulgaridade. É uma palavra forte, mas é algo que tem peso nas coisas do Brasil. Uma pessoa com a formação intelectual como a que eu tive tem mais dificuldade de se ajustar ao mundo das pessoas.
Nunca fui uma pessoa difícil para se relacionar. Pensam que eu sou metido a besta, mas sou mais simples do que parece. Mas como é que você vai fazer a síntese do Brasil de hoje? Não é fácil.
No livro, o sr. diz que a grande obra da sua geração foi a redemocratização após o regime militar. A ditadura acabou, e o país ganhou uma nova Constituição, mas muita gente acha que esse processo de certa forma ainda não se completou. Concorda? O Brasil não é fácil de entender. Dá impressão de ser uma geleia geral. A sociedade mudou rápido, e agora parece um pouco paralisada, ou sedimentada. Nosso sistema partidário é muito pulverizado. Mas temos liberdade, e a gente só dá valor à liberdade quando ela acaba.
Não dá para imaginar que não se tenha um sistema político que corresponda às aspirações populares. Bem ou mal, na hora da eleição todos votam, mas democracia não é só isso. Tem o sistema judiciário, o Parlamento, a imprensa, os partidos. Embora às vezes haja ímpetos autoritários de um ou de outro, nosso regime não é autoritário. Você tem liberdade, tem recursos, instituições que funcionam.
O desgaste que essas instituições têm sofrido no governo Jair Bolsonaro corrói a confiança que as pessoas depositaram nelas? Pode ser. Na democracia, você tem que estar sempre com o olho na liberdade, nas instituições, naquilo que se organiza, que garante a alternância no poder. Se você não toma cuidado, vira outra coisa. O regime político nunca é dado para sempre. Bem ou mal, conseguimos construir uma base institucional razoável para a democracia. Pode se perder? Pode. Mas está perdida? Não.
O aumento da presença de militares em postos-chave do governo representa um risco? Você tem gente competente nas Forças Armadas, e eles aderiram ao sistema democrático. Isso pode mudar? Pode. Todos nós podemos mudar de uma hora para outra. Mas não acho que exista um risco de militarização.
Tem muito militar no governo porque o presidente, além da origem no Exército, tem pouco contato com o resto da sociedade. Ele conhece esse pessoal, foram seus colegas na escola militar, ele tem mais naturalidade com eles. O risco é acabar perdendo a capacidade de falar com os civis.
Mas não creio que exista no meio militar hoje uma vocação para fechar as instituições. Conheço um ou outro. São pessoas de cabeça normal, criadas com valores democráticos. Não atribuo ao presidente Bolsonaro o propósito de fazer aqui uma ditadura militar.
Meu pai era general, meu avô era marechal. Os militares, no passado, eram um partido político. Derrubavam governos. Agora não. Eles aceitam o resultado da vontade popular, aceitam a institucionalidade. O que não quer dizer que você não tenha que cuidar o tempo todo.
O sr. revisita mais uma vez seu trabalho sobre a teoria da dependência, em especial o livro escrito com o chileno Enzo Faletto. Acha que a obra foi mal compreendida? Ela foi exageradamente compreendida. O objetivo do trabalho era fazer uma crítica às teses da Cepal sobre o desenvolvimento econômico, chamando atenção para aspectos que não eram tomados em conta, como as instituições, a democracia e as diferenças na estrutura econômica dos países.
Muitos pensavam na época que éramos todos dependentes e continuaríamos sendo, a menos que viesse o socialismo. Nunca foi a nossa visão. Não era automático que passaríamos da dependência para o socialismo. Nem haveria, como não existe hoje, uma independência completa.
Muitos leram nosso livro como se fosse um manifesto terceiro-mundista, mas ele nunca foi isso. Queríamos que os países tivessem o máximo de autonomia que pudessem, mas no contexto da globalização, que ainda não tinha esse nome e estávamos descobrindo.
Acha que o Brasil aproveitou bem as oportunidades oferecidas pelo processo de globalização, ou perdemos esse bonde enquanto outros países aproveitaram melhor as chances que tiveram? A China aproveitou melhor. Entenderam a importância da tecnologia, deram muita atenção à ciência, à educação. No Brasil, as coisas se deram como se os ganhos viessem de barato, mas não era assim. Tinha que fazer mais esforço.
O Brasil está situado em uma região do mundo em que temos um peso grande e por isso ficamos, talvez, confortáveis demais na nossa cadeira. Teria sido melhor se tivéssemos um pouco mais de necessidade de competir, nos termos do futuro.
Nós aqui aceitamos muito a marginalização de pessoas e grupos sociais. Não incluímos essa gente. Então temos ainda uma agenda mais complicada do que a dos países que conseguiram incluir. Os chineses perceberam, com mais rapidez do que outros povos, e se ajeitaram.
Ainda temos aqui problemas que não se justificam, porque a desigualdade de renda no Brasil é muito acentuada. Além do que seria razoável, mesmo para um país capitalista. E acho que tem uma coisa mais grave do que isso, ou tão grave quanto. Nós naturalizamos a pobreza.
Tivemos um grande avanço na educação primária e com a criação do Sistema Único de Saúde, mas precisamos também de empregos para quem tem só esse nível de conhecimento.
Os danos causados pela pandemia serão duradouros? Não acho que o Brasil vá ficar paralisado quando isso terminar. O país levou um susto, claro, todo o mundo leva, mas tem capacidade de recuperação. Teremos momentos difíceis. Todo o mundo está com medo agora. Medo de morrer, principalmente. Mas você não tem trabalho também, e a renda diminuiu.
Depois da pandemia, teremos uma agitação grande. As pessoas vão querer espaço. E precisaremos de governos capazes de entender a realidade, que não fechem os olhos à realidade. O Brasil tem muitas bolhas, mas não dá para governar numa bolha.
Por muito tempo, em especial a partir do seu governo, houve a crença de que reformas e uma maior integração econômica permitiriam reduzir de forma mais expressiva as nossas desigualdades. Por que isso não aconteceu? Não foi só aqui. Muitas vezes os países crescem e você deixa de olhar os que ficaram para trás. Agora, quando é que você olha os que estão para trás? Quando eles reclamam. Quando não havia liberdade, era mais difícil perceber. Quando há liberdade, eles reclamam. É assim no Brasil também.
Em São Paulo, eu morei em uma região próxima de onde estavam as fábricas da família Matarazzo. Na hora do almoço, os operários comiam na calçada, com as marmitas que traziam de casa. Quando passava um engravatado, abriam espaço para o sujeito passar. Hoje, duvido que abrissem espaço.
Porque hoje essas pessoas existem. Quem está por cima não olha para baixo. A não ser que o de baixo machuque o pé de quem está em cima. É chato isso, mas é necessário. Quando o dominado começa a se movimentar é que você percebe. Nada vem de graça na vida, na sociedade.
O sr. dedicou boa parte de sua vida acadêmica ao estudo da escravidão e recorda no novo livro a babá da sua infância, filha de uma ex-escrava de seu bisavô. O que ela representa para o sr. hoje? Na casa do meu pai, Alzira comia na mesa conosco. Isso não era comum na época. Ela era quase branca. Mas o habitual era uma coisa mais discriminatória. Nesse tempo, as famílias tradicionais tinham muitos agregados, e Alzira sentava na nossa mesa. Na minha avó, não.
Então ela simbolizou para mim tanto a escravidão como a necessidade de tomar consciência de que os negros não eram mais escravos. Eles têm liberdade, e você tem que tratá-los como iguais. É fácil falar e dificílimo fazer. Você sentir o outro como igual.
As famílias tradicionais eram assim. Quer dizer, tinha muita empregada, era fácil, era barato. Viviam mal as empregadas. Eu nem percebia, não notava. Isso mudou completamente. Nós aqui nascemos com a ideia de que ter empregada é eterno. Não é. Cada um vai ter que cuidar de si.
Como o sr. vê as formulações teóricas mais recentes sobre a questão racial no Brasil, como o conceito de racismo estrutural? A sociedade está melhorando, está avançando, está reconhecendo o outro, independentemente da posição social. Agora, isso é fácil de falar, mas quando você tem posição de mando, é complicado.
O racismo estrutural existe. Vem da escravidão e está enraizado. Os estrangeiros que vieram para cá, que não conviveram com a nossa escravidão, sentiram isso também. Mas também existe hoje um sentimento de autossuficiência da parte dos negros, a valorização da cor, da religião, do seu modo de viver.
Então acho que as coisas melhoraram, no sentido de que o mundo atual permite mais convivência. Quando não tem convivência, você vê o outro como estrangeiro. Quando você está ao lado, percebe a humanidade da pessoa, se você for minimamente aberto. Acho que isso melhorou no Brasil.
Há espaço para aprofundar políticas afirmativas como as cotas para acesso à universidade pública? Sou favorável às cotas. Acho que foram benéficas, porque levam à convivência e ao respeito ao outro e dão uma certa garantia para aqueles que eram discriminados. Você já vê, mesmo em restaurantes melhores, pessoas negras com mais frequência. Eu acho isso um sinal positivo.
Tem que melhorar mais? Tem. Pode. Mas melhoraram. E isso em parte porque houve luta para que melhorasse. Sem luta, nada acontece. Tem que haver sempre quem reclame. Eu não sou do tipo de reclamar, porque nunca precisei reclamar muito. Mas quem precisa tem de reclamar.
Como tem sido sua rotina na pandemia? Durmo oito horas por dia. Levanto, tomo café, leio jornais, venho para o computador e começo a trabalhar. Paro, almoço, durmo depois um pouquinho. Vejo os amigos que moram perto, ando pelo bairro. Mas é chato. É uma vida pobre, esse semi-isolamento em que somos obrigados a viver.
Eu não tenho medo de morrer, nem de pegar o coronavírus. Tomei a vacina e tomo cuidados, por causa dos outros, mas não fico preocupado com esse negócio. Está chato.
TRECHOS DO LIVRO
Exílio em 1964 “No avião, chorei baixinho; não entendia por que eu. Por que comigo? Estava mais interessado na tese e em ocupar uma cátedra [na USP] do que em apoiar João Goulart ou ‘as esquerdas’.”
Maio de 1968 na França “Os operários haviam sido convidados a entrar [na universidade de Nanterrre] e assistiam, com certo pasmo, as discussões nas quais se falava de amor, de solidariedade, da cultura, mas nada sobre salários.”
Teoria da dependência “Critiquei, às vezes duramente, os que acreditavam na inviabilidade do crescimento do capitalismo na região latino-americana e viam, por todo lado, o aumento das populações marginais. Não que estas inexistissem, mas eu julgava que não seriam empecilhos para que alguns países da região se industrializassem.”
Assembleia Nacional Constituinte “As discussões apaixonantes sobre o sistema de governo e mesmo sobre as regras para a formação de partidos passavam longe de algumas das questões sociais, como, por exemplo, as relativas aos preconceitos de cor (supunha-se fossemos uma democracia racial), ou ao desemprego. Mesmo nas econômicas, primava o interesse nacional, camuflando as questões da desigualdade de rendas. Era como se, havendo crescimento da economia e manutenção da democracia, a sociedade e também a política mudariam sem haver necessidade de que essas questões se colocassem.”
Candidatura presidencial em 1994 “Lula estava crescendo e alguém tinha que enfrentá-lo. O PT criticava duramente o Plano Real, a eleição de Lula parecia ser um risco de retrocesso. Foi por isso que aceitei ser candidato. Não era uma aspiração minha, pelo menos consciente. Pode ser que no fundo eu quisesse, não sei.”
Tucanos e petistas “Não é apenas a extrema direita que se perde em sua própria intolerância e negacionismo. Lula e o PT cometeram o erro estratégico de considerar o PSDB como seu principal inimigo. Não éramos, nunca fomos. A principal ameaça à democracia era e é a extrema direita autoritária e regressiva.”
Bolsonaro no poder “Enganam-se os que pensam que ‘o fascismo’ venceu. Enganam-se tanto quanto os que vêm o ‘comunismo’ por todos os lados. Essa polarização não existe mais no mundo real, apenas na mente dos que acreditam nos delírios que propagam.”